A instalação de câmeras por cidadãos em espaços públicos pode até parecer uma solução prática para reforçar a segurança urbana, mas levanta sérias preocupações do ponto de vista constitucional, legal e social. Em tempos de crescente uso de tecnologias de vigilância, inclusive com apoio de inteligência artificial, é urgente debater os limites éticos e jurídicos desse tipo de prática.
A recente decisão da Comissão de Justiça da Câmara Municipal de Vitória, que opinou pela inconstitucionalidade do Projeto de Lei nº 99/2025, conhecido como “Lei Martini”, reacendeu esse debate. A proposta previa que qualquer pessoa, física ou jurídica, pudesse instalar câmeras de videomonitoramento em ruas, praças e calçadas da capital capixaba, sem autorização prévia do poder público. Ainda que bem intencionada, a medida desconsidera uma série de implicações legais e sociais ligadas à privacidade, à proteção de dados e ao uso do espaço público.
Nas últimas décadas, a vigilância urbana ganhou novos contornos com o avanço tecnológico. Câmeras de alta definição, sensores de movimento, softwares de reconhecimento facial e algoritmos de inteligência artificial passaram a ser incorporados ao cotidiano das cidades.
Embora possam representar instrumentos valiosos para a prevenção e investigação de crimes, essas ferramentas também aumentam o risco de monitoramento abusivo, discriminação algorítmica e violação da privacidade, especialmente quando utilizadas sem regulação e controle.
Sob a ótica do Direito, a captação de imagens de pessoas identificáveis em espaços públicos configura tratamento de dados pessoais e, portanto, está submetida à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Essa legislação estabelece princípios como finalidade específica, necessidade, proporcionalidade e segurança da informação. Na ausência de regras claras, não há garantias sobre quem acessará as imagens, por quanto tempo elas serão armazenadas, com que finalidade serão utilizadas ou se poderão ser compartilhadas com terceiros.
Além disso, há questões constitucionais relevantes, como o possível vício de iniciativa em propostas que disciplinam o uso do espaço público por particulares e interferem em atribuições típicas do Poder Executivo, como a gestão do patrimônio público e o exercício do poder de polícia administrativa.
A segurança pública, conforme o art. 144 da Constituição Federal, é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. Sua condução, no entanto, é função típica do poder público e deve observar os princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, sendo incabível sua delegação irrestrita a particulares, sem controle ou regulamentação estatal.
Em outros países, a ampliação indiscriminada de sistemas de vigilância já gerou repercussões. No Reino Unido, que possui uma das maiores redes de câmeras do mundo, o debate sobre o equilíbrio entre segurança e liberdade civil é permanente. Em São Francisco, nos Estados Unidos, a prefeitura chegou a proibir o uso de reconhecimento facial por órgãos públicos diante dos riscos à privacidade e da falta de precisão dessas ferramentas em relação a minorias raciais e sociais.
No Brasil, é preciso atenção redobrada. Em um contexto marcado por desigualdades sociais e pela carência de políticas públicas estruturadas, permitir a expansão de uma vigilância privada e descentralizada, sem controle estatal ou salvaguardas legais, pode gerar efeitos colaterais graves: desde constrangimentos e discriminação até a exposição indevida de pessoas em situação de vulnerabilidade, como crianças, mulheres, população em situação de rua e minorias.

A intenção de colaborar com a segurança da comunidade é legítima e compreensível, mas não pode atropelar o ordenamento jurídico. Soluções duradouras e eficazes para os desafios da segurança urbana passam pela construção de políticas públicas integradas, planejadas com base em dados, tecnologia e responsabilidade. É papel do poder público oferecer alternativas que respeitem os direitos fundamentais da população, ao mesmo tempo em que garantam a proteção do bem-estar coletivo.
O desafio, portanto, não está apenas em combater a criminalidade, mas em construir soluções que não enfraqueçam os próprios pilares do Estado Democrático de Direito. A tecnologia pode e deve ser uma aliada nesse processo, desde que seu uso seja transparente, controlado e orientado por critérios técnicos e éticos. Só assim será possível construir cidades realmente inteligentes, seguras e humanas.
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