Este artigo contém spoilers sobre 'Conclave'. Por precaução, avisamos até onde o texto pode ser lido sem estragar a experiência de quem vai ver o filme.
A histerectomia, cirurgia para retirada do útero, recentemente ganhou espaço no cinema com o filme 'Conclave'.
Embora abordado de forma sutil, o tema suscita uma reflexão importante sobre os diversos contextos em que essa cirurgia é realizada, por questões médicas ou relacionadas à identidade de gênero. Essa conexão entre a medicina e os dilemas contemporâneos reforça a relevância de compreendermos, de forma ampla, os aspectos clínicos, técnicos e psicossociais envolvidos na decisão pela histerectomia.
A histerectomia está entre as cirurgias ginecológicas mais realizadas globalmente e é indicada para tratar diversas condições que impactam a saúde reprodutiva e o bem-estar feminino. O procedimento consiste na retirada do útero, podendo ser total, quando envolve também a remoção do colo uterino, ou subtotal, quando o colo é preservado.
Em determinadas situações clínicas, pode-se ainda associar a histerectomia à salpingo-ooforectomia, que é a retirada das trompas e dos ovários. Importante destacar que o útero não tem função de produção hormonal, pois essa responsabilidade cabe aos ovários, sendo um fator relevante na preservação hormonal quando eles são mantidos.
A decisão pela cirurgia deve ser sempre criteriosa, levando em conta não apenas os aspectos físicos, mas também a história clínica, reprodutiva e o desejo da paciente em preservar sua função hormonal, sobretudo quando os ovários estão envolvidos. Além disso, a cirurgia é geralmente recomendada para pacientes que já tiveram filhos e não desejam mais engravidar.
Entre as principais indicações para a histerectomia estão os miomas uterinos, tumores benignos originados no tecido muscular do útero, que podem causar sangramento intenso, dor pélvica e aumento do volume abdominal. Outro motivo frequente é a adenomiose, uma condição na qual o tecido endometrial invade a parede muscular do útero, causando aumento do órgão, dor intensa e sangramento excessivo. Diferentemente da endometriose, que pode comprometer outros órgãos além do útero e nem sempre é solucionada pela retirada uterina, a adenomiose pode ser tratada definitivamente com a histerectomia em casos graves.
O prolapso uterino, comum em mulheres que passaram por múltiplos partos vaginais, é outra indicação importante, pois interfere na função urinária, sexual e intestinal. Além disso, casos de câncer ginecológico, como de colo do útero, corpo uterino ou ovário, sangramentos anormais refratários a tratamentos clínicos e algumas infecções severas também podem exigir a realização da histerectomia como medida terapêutica definitiva.
Do ponto de vista técnico, a cirurgia pode ser realizada por via abdominal, vaginal ou laparoscópica, sendo esta última associada a um tempo de recuperação mais curto, menor sangramento e menos dor no pós-operatório. Atualmente, a histerectomia laparoscópica também pode ser realizada com assistência robótica, trazendo ainda mais precisão aos procedimentos minimamente invasivos.
A escolha da via cirúrgica depende de diversos fatores, como o volume uterino, a experiência da equipe médica, a presença de aderências pélvicas e as comorbidades da paciente. A abordagem minimamente invasiva tem sido amplamente incentivada sempre que possível, pois reduz complicações e permite um retorno mais rápido às atividades cotidianas.
Para muitas mulheres, o útero vai além da função reprodutiva — representa feminilidade, maternidade, identidade corporal e até espiritualidade. Por isso, o acompanhamento multidisciplinar, com suporte psicológico, é essencial antes e depois do procedimento, principalmente quando realizado em pacientes jovens ou em situações não emergenciais.
*Com spoilers daqui para frente*
O tema ganha uma nova camada de complexidade quando observamos sua presença em contextos menos tradicionais, como o retratado no recente filme 'Conclave'. Na trama, ambientada no Vaticano e centrada na escolha do novo papa, é revelado que um dos cardeais, designado como homem, nasceu com o aparelho reprodutor feminino e pensou em passar por uma histerectomia. Embora a informação seja apresentada de forma discreta, ela ressoa profundamente com questões atuais da medicina e da sociedade, especialmente no que diz respeito à identidade de gênero e à medicina trans.
Pessoas transmasculinas (homens trans), indivíduos não binários que foram designados mulheres ao nascimento e pessoas intersexo muitas vezes se submetem à histerectomia como parte do processo de afirmação de gênero. Nesses casos, a cirurgia tem papel não apenas clínico, mas também identitário, sendo vista como uma forma de aliviar a disforia de gênero, alinhar corpo e mente e reduzir a necessidade de procedimentos médicos regulares, como exames ginecológicos invasivos e acompanhamento de riscos hormonais, como o câncer de endométrio.
Diversos estudos demonstram que, para esses pacientes, a histerectomia pode representar uma melhoria significativa na qualidade de vida, no bem-estar psicológico e na autoestima, desde que realizada com suporte adequado e dentro de um modelo de cuidado que respeite a individualidade e os direitos humanos.
Portanto, seja a histerectomia realizada por razões médicas ou como parte da afirmação de identidade, sua abordagem deve sempre levar em conta ciência, empatia e responsabilidade. O corpo humano é diverso, assim como as vivências e os significados que cada pessoa atribui a ele. Ao reconhecer isso, avançamos não apenas na medicina técnica, mas também na medicina humanizada, que escuta, acolhe e respeita cada história.
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