Autor(a) Convidado(a)
É professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) e editor-chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP)

O sarcasmo e sua dosimetria: recreativa, medicinal e tóxica

Entre o humor e a ferida, o sarcasmo revela sua natureza ambígua — pode ser ponte, remédio ou veneno, conforme a dose e a intenção de quem o usa

  • Luiz Henrique Lima Faria É professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) e editor-chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP)
Publicado em 19/10/2025 às 13h30

Sempre considerei o sarcasmo como uma presença sofisticada entre as formas de expressão argumentativa. Contudo, apesar dessa impressão inicial, ao pesquisar sobre sua etimologia, descobri que sua origem vem do grego sarkasmós, que significa “rasgar a carne”, portanto, traz consigo algo inquietante, que antevê a possibilidade de seu uso como artifício de violência retórica.

No campo discursivo, trata-se do ato de dizer o contrário do que aparenta, utilizando o bom humor como disfarce da crítica, a inteligência como gatilho e o riso como projétil. Na arte da retórica, reconheço nele uma ferramenta capaz de desmontar falácias, expor hipocrisias e provocar reflexão. É um modo irreverente de resistência, um artifício de linguagem que só encontra sentido em mão dupla, pois depende tanto da sagacidade de quem fala quanto da escuta atenta de quem compreende.

Imagem Edicase Brasil
Sarcasmo machadiano é recreativo porque alia inteligência e compaixão. Crédito: InimalGraphic | Shutterstock

O sarcasmo transforma o discurso de dentro para fora, reagindo na formulação da linguagem como um composto químico que altera o alcance de ação das palavras. Ele desperta o pensamento, acelera o raciocínio e intensifica a mensagem, produzindo um efeito que nunca é neutro. Seu uso, entretanto, requer sensibilidade e medida, pois o mesmo impulso que permite revelar a verdade também pode corrompê-la.

Quando o sarcasmo surge em seu uso recreativo, carrega leveza e espírito lúdico. É o humor que desarma, que transforma o absurdo do cotidiano em riso partilhado, revelando humanidade onde antes havia apenas tensão. Aparece nas conversas entre amigos e nas pequenas ironias que tornam o convívio mais ameno e o olhar mais generoso. Mostra que inteligência e gentileza podem caminhar juntas, ensinando que a crítica não precisa excluir a ternura. Nesse uso, o sarcasmo anima o discurso e celebra a linguagem como território de encontro, onde o riso deixa de ser arma e se torna ponte.

Machado de Assis, a meu ver, elevou o sarcasmo recreativo à condição de estado da arte. Sua ironia não busca humilhar, mas iluminar, revelando as vaidades e contradições humanas com serenidade e precisão. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, percebo no sarcasmo do narrador morto um espelho bem-humorado da vida, em que o riso nasce não da crueldade, mas da lucidez. O sarcasmo machadiano é recreativo porque alia inteligência e compaixão, transformando o julgamento em reflexão e o escárnio em delicadeza diante da escassez de generosidade para com a condição humana.

Para além do uso recreativo, percebo uma forma mais profunda e vital da aplicação do sarcasmo, aquela que nasce da dor e se converte em autopreservação. É o que chamo de sarcasmo em seu uso medicinal. Diante de realidades sufocantes e sistemas que esmagam a liberdade, torna-se simultaneamente modo de denúncia e de defesa. É o riso que interrompe o sangramento, uma tentativa de cura para a ferida aberta pela injustiça.

Penso em Chico Buarque, que compreendeu como poucos o poder insurgente e curativo do sarcasmo. Em suas obras, a ironia atua como forma de resistência e também de sobrevivência diante da opressão. Canções como Apesar de Você e Vai Passar revelam um enredo bem-humorado que se ergue contra o silêncio imposto, convertendo a censura em provocação e a dor em denúncia. Seu sarcasmo é medicinal porque revela a face do mal com elegância e fere a besta com beleza, fazendo da palavra espada e abrigo. Há, em suas letras, a coragem de quem convoca o riso para instaurar resistência, de quem encontra na ironia o caminho possível para a liberdade.

Com o tempo, percebi que há também um limite perigoso na formulação da dose do sarcasmo, aquele ponto em que ele deixa de ser aperitivo ou remédio e passa a intoxicar a comunicação. Quando se torna um vício mental, o sarcasmo transforma o bom humor em cinismo. Aquilo que começou como mecanismo legítimo de defesa converte-se em arma disparada ao acaso. Surge então o sarcasmo tóxico, que já não busca reparação, mas dano. É o sarcasmo que nega o diálogo e substitui a escuta pela desconfiança crônica. É o olhar que ironiza até os gestos de ternura e converte o afeto em matéria de escárnio. O sarcasmo tóxico rompe vínculos, seca a empatia e aprisiona o sujeito na cela da descrença socioafetiva.

Lembro de Vladimir Safatle, que identifica no cinismo contemporâneo uma das formas mais sofisticadas de servidão. Em Cinismo e Falência da Crítica, o autor observa que o sujeito cínico não é aquele que ignora a injustiça, mas aquele que a reconhece e, mesmo assim, a reproduz com indiferença. O sarcasmo tóxico é a linguagem desse estado moral, em que o exercício da inteligência já não emancipa e o riso se converte em resignação preguiçosa, gesto morno de quem prefere a ironia como ponto final à coragem da busca compartilhada por solução.

Sob essas elucubrações e referências, exponho o sarcasmo como uma força ambígua que atravessa os discursos e os afetos. Quando recreativo, refina o espírito e celebra a inteligência humana. Quando medicinal, protege a alma e devolve alento diante da opressão. Quando tóxico, envenena o mundo interior e corrói a delicada capacidade de convivência com o outro. Distinguir entre lazer, remédio e veneno é um exercício de cognição que exige lucidez e ternura, pois, a depender do uso, a mesma palavra que alegra ou cura também dilacera.

Nestes tempos em que o cinismo costuma ocupar o lugar da empatia e o riso se impregna do fel do desprezo, creio que a verdadeira sabedoria esteja em reavivar a humanidade nos gestos simples, aprendendo a rir com pureza, a falar com respeito, a escutar com paciência e a permitir que o humor volte a ser campo de encontro e não apenas de batalha. Que nesse cenário renovado o sarcasmo reencontre sua vocação libertadora e se tempere com solidariedade, para que seja capaz de alertar sem condenar o ser humano à solidão das contendas irreconciliáveis.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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