Eu me lembro nitidamente do céu nublado daquele dia. Era pouco mais de 10h da manhã de uma segunda-feira. As máquinas e caminhões da prefeitura aplicavam piche na rua de casa. Quem conhece talvez esteja lembrando do cheiro, exatamente como faço agora. Um material pegajoso, viscoso e da cor preta. Acompanhar o trabalho de pavimentação era o playground da criançada. Ficávamos do portão, impedidos de sair e maravilhados com a novidade.
Enquanto o piche era despejado, eu e os outros vizinhos curiosos nos comunicávamos, cada um do seu quintal. Até que um deles gritou, dizendo que eu parecia um “picolé de asfalto”. Daquele momento em diante, eu estava sentenciado a uma questão perpétua: eu sou uma pessoa preta. Ainda não sou capaz de dizer se tive uma vida melhor ou pior por isso, mas a maturidade ajuda a interpretar o presente.
À época, eu não entendia por que não podia deixar meu cabelo crescer, usar boné, tomar cuidado com minhas sacolas e com meu comportamento nas lojas e supermercados ou ficar até tarde na rua. Sair sem documento tinha o mesmo peso que infringir o Código Penal brasileiro. Meus pais eram rigorosos quanto a esse cuidado. Nunca os ouvi dizer a palavra “racismo”, nem “somos negros, meu filho”, mas ouvia: “não quero filho vagabundo”, “se usar boné, a polícia vai te parar”, “quem tem cabelo grande não é tratado como gente”. Isso era na década de 1990 e nos anos 2000.
Hoje, em 2025, sei que eles estavam dizendo que o nosso estereótipo é marcado por preconceito, discriminação e racismo cada dia menos velado. O antropólogo Kabengele Munanga disse que, no Brasil, uma pessoa negra não é proibida de acessar um restaurante chique, como já fora nos Estados Unidos e na África do Sul, mas talvez escute que “não vai ser possível entrar porque era preciso fazer reserva antes”. O método é sofisticado. Nesta Pátria Amada, nossos corpos precisam ser dóceis, mudos e educados. Salve salve!
Quem foge à regra corre o sério risco de ser lembrado disso, e esse lembrete pode variar de intensidade conforme o interlocutor. Se você não tem uma vida racializada, talvez a preocupação com a aparência não faça sentido. Muita gente pode não se dar conta, mas nós, que sentimos na pele (ou nos olhares), sabemos do que estou falando. Menciono essa questão porque, no dia 20 de novembro, foi o feriado da Consciência Negra.
Tivemos reportagens, vídeos e textos exaltando o orgulho ou a dor de ser negro no Brasil. Li uma reportagem informando que os negros recebem salários menores do que os brancos. A manifestação mais curtida e com o maior número de comentários na mídia social do veículo que publicou o texto era o depoimento de um homem que se autodeclarava preto.
Ele enfatizava o fato de ter nascido pobre e, mesmo assim, ter se tornado um “cidadão de bem com zero vitimismo”. Contou que “venceu na vida, com esforço, e chegou lá”, pois, para ele, “não existe racismo quando sua vida está ocupada”. Tenho a mesma dúvida da Conceição Evaristo: “que ‘lá’ é esse?”. Por que uns precisam dar o sangue, enquanto outros simplesmente nascem “lá”? Quem não se percebe envolvido já foi capturado. Não tem a ver com culpa, mas com o êxito de um sistema muito bem enredado. Esse emaranhado de sentidos forma, educa e impõe um ritmo em que o tempo produtivo é sagrado e o ócio é um pecado capital. Pecado, não. Agora, o que antes estava no aspecto da moral, atualmente é considerado improdutivo. A ideologia nos faz crer que não há motivo para reclamar. Não se esqueça: seu futuro só depende de você.
A lógica atual incute essa ideia da individualidade. Afinal, não há como fracassar quando você “trabalha enquanto eles dormem”. “Eu consegui. Você também pode!”. Pouco importa se você teve dificuldade para frequentar a escola. Ia estudar com fome porque não tinha comida em casa? Na adolescência, trabalhava para complementar a renda da família? Tinha pai e mãe presentes quando criança? Convivia em um ambiente violento?
A quantidade de “sim” e “não” das suas respostas traduz o lugar que você ocupa agora. É tudo muito perverso. Na maioria das vezes, quem já nasceu “lá” vive indicando receitas que prometem uma vida digna com um salário mínimo e garante que sobra dinheiro para investir. Vendo tudo isso daqui debaixo, sei que a conta não fecha. Muitos de nós, desde criança, aprendemos que o sabor que resulta de tudo isso é amargo. Não precisa ser especialista em nada para sentir que falta muito para a situação ficar (confortavelmente) preta de verdade neste país gentil.
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