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Kelder é vigário episcopal para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória. Carlos é professor, doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo

O bebê da Vila Rubim: um Natal fora de época nas ruas de Vitória

Se o nascimento de uma vida nessas circunstâncias não nos incomoda, significa que já não somos humanos. Feliz Natal, em julho

  • Kelder José Brandão Figueira e Carlos Fabian de Carvalho Kelder é vigário episcopal para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória. Carlos é professor, doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo
Publicado em 04/07/2025 às 10h07

Não sabemos o dia exato, mas, pelos relatos de São Lucas, conhecemos o contexto em que Jesus nasceu. Seus pais, vindos da Galileia, foram a Belém para cumprir o recenseamento determinado pelo imperador romano, Cesar Augusto (Lc 2).

Maria, mesmo estando grávida e nos últimos dias de gestação, não encontrou em Belém ninguém que a acolhesse para o parto. Jesus nasceu em uma noite escura, em condições indignas, em um estábulo, e foi colocado em um cocho, tendo como testemunhas apenas os animais.

Mais de dois mil anos depois, o drama de Maria se repete, mas, agora, nas calçadas de Vitória. Na madrugada da última quinta-feira, 3 de julho, uma criança veio ao mundo na Vila Rubim, próximo ao Hospital Santa Casa de Misericórdia, filho de uma mulher em situação de rua. “Nasceu para nós um menino. Um filho nos foi dado” (Is 9,5).

Esse nascimento escancara a realidade das ruas da cidade que fingimos não enxergar: a brutalidade das condições de vida de milhares de pessoas em situação de rua, especialmente as mulheres, negligenciadas pelo poder público, tão bem retratada no livro “O mais Eu de todos em mim vive me desconhecendo” do escritor Jorge Elias e do fotógrafo Vitor Nogueira.

A cena que compõe um presépio moderno e desolador, joga luz sobre o abandono a que estão submetidas mulheres negras e empobrecidas em nossa sociedade. São vidas excluídas dos bens sociais, culturais e materiais. Vidas matáveis, apátridas, sem nome, sem rosto, sem direitos — cidadãos de papel, descartáveis, condenados ao limbo das praças, das pontes, das celas e da indiferença, que quando nascem denunciam as contradições das instituições sociais, políticas e religiosas.

A história dessa mãe e de seu filho recém-nascido faz lembrar a canção “O Meu Guri” de Chico Buarque: “Quando, seu moço, nasceu meu rebento, não era momento de rebentar. Já foi nascendo com cara de fome. E eu não tinha nem nome pra lhe dar”.

O nascimento dessa criança, nos asfaltos de Vitória, que entopem os esgotos e cobrem as ruas e bueiros da cidade, é também um símbolo. Quando uma mulher preta, empobrecida, em situação de rua, traz uma nova vida ao mundo, ela torna presente a escravização e revela a face mais cruel da negligência do Estado: a que desumaniza, naturaliza a miséria e ignora por completo a Doutrina da Proteção Integral da Criança, pilar do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Mas todo nascimento também tem a potência de um mundo novo possível. Como dizia Hannah Arendt, todo nascimento traz em si uma nova possibilidade, pois nos move a sonhar com algo novo, inusitado, uma nova criação.

O nascimento do menino da Vila Rubim, sem berço, sem teto, sem dignidade mínima, como o do Deus Menino na manjedoura, nos obriga a perguntar: que cidade estamos construindo? Que país somos, se permitimos que a vida comece e termine na sarjeta? Até quando naturalizaremos a violência a que são submetidas as pessoas em situação de rua, principalmente, as mulheres? Quais novas possibilidades esse nascimento e tantos outros, que já nasceram sem dignidade mínima, podem nos proporcionar?

Drama em Vitória: mulher dá à luz na rua e deixa hospital sem o bebê
Drama em Vitória: mulher dá à luz na rua na Vila Rubim. Crédito: Reprodução

Estamos em julho, longe do Natal no calendário. Mas essa criança nos devolve ao presépio. Não o das vitrines, ruas enfeitadas, casinhas e vilas de papai Noel, que consomem milhões dos recursos públicos, mas o da rua nua, da fome, da exclusão. Um Natal fora de época que nos confronta com o presente, este tempo onde nascer é, para muitos, já começar sendo negado.

Talvez esteja aí o sentido mais radical do Natal: não o de um dia específico, mas o da consciência de que todo nascimento, especialmente dos que nada têm, torna presente a humanidade de Deus e exige de nós transformação. E que nenhuma cidade será justa enquanto a maternidade continuar sendo um ato de resistência nas calçadas.

Se o nascimento de uma vida nessas circunstâncias não nos incomoda, significa que já não somos humanos. Feliz Natal, em julho.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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