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Novo marco do saneamento não é a salvação e tampouco o vilão

Se renderá bons frutos, difícil prever, mas sabe-se que a iniciativa privada não é a salvação da lavoura e caberá ao poder público regular vigorosamente os planos e os contratos de concessão

  • Lorenzo Caser Mill
Publicado em 26/06/2020 às 15h30
Atualizado em 26/06/2020 às 15h30
Água de nascentes fazem parte da rotina na propriedade do produtor João Martins
No Brasil, 35 milhões de pessoas ainda não têm água tratada. Crédito: Matheus Martins

O espaço é enxuto e não permite a profundidade merecida pelo tema, mas esta análise do marco legal do saneamento básico parte de duas premissas – ou seja, duas verdades aprioristicamente postas sobre as quais se desenvolverá o restante do raciocínio: a iniciativa privada não é sinônimo de maior qualidade e eficiência em um serviço, jamais fazendo jus à fama de panaceia; e a nova lei aprovada não privatiza bem público algum, tão só impondo a realização de licitação para que, por meio de concessão, a iniciativa privada atue em um setor outrora a ela hostil.

Muito bem. O saneamento básico no Brasil é uma tragédia – para não cairmos no vernáculo chulo. 48% da população não possui acesso a coleta de esgoto e 35 milhões de pessoas ainda não têm água tratada, número equivalente à população do Canadá. Como se o panorama já não fosse suficientemente indigesto, esses dados não apresentam variação promissora há, pelo menos, trinta anos.

Mas por que o saneamento há muito é atribuição quase que exclusiva do poder público? Simples: tratando-se de um serviço essencial a direitos fundamentais da população, como saúde e dignidade, assenta-se a ideia de que deve ser ele prestado pelo menor custo possível, de modo a universalizar o acesso.

Como qualquer empreitada envolvendo a iniciativa privada pressupõe uma margem de lucro ou retorno, o poder público, ao extirpar tal margem, estaria hábil a oferecer o serviço por um preço menor ao consumidor final. A lógica, atraente embora simplória, é essa.

Não deu certo. Hoje, em regra, as cidades firmam os chamados “contratos de programa” com as empresas estaduais de água e esgoto, permitindo às estatais assumirem os serviços sem concorrência e deixando o sistema à mercê de investimento público, sobretudo estadual.

A coisa desanda quando percebemos que os estados estão insolventes, com elevação de gasto corrente obrigatório e implorando migalhas à União. Não à toa, o investimento per capita em saneamento vem despencando em praticamente todas as unidades federativas.

O que fazer, então? Duas opções: seguir confiando no atual modelo, contando com consórcios e a capacidade de endividamento da União mediante emissão de títulos e moeda – medida vital para certas obras de infraestrutura, especialmente aquelas com impacto econômico imediato no tecido industrial e comercial próximo; ou flexibilizar a injeção de capital privado no setor por meio de concessões, prevendo obrigatoriedade de licitação, metas de ampliação da rede de água e esgoto, mecanismos de financiamento de regiões mais pobres e menos densamente povoadas pelos principais centros urbanos (antigo subsídio cruzado) e afins.

Ao final do contrato de concessão, caso tudo dê certo, o serviço contará com uma rede ampliada e modernizada, podendo, assim, ser reestatizado, já que demandará apenas investimento marginal de manutenção.

Façamos essa importante distinção: a concessão de serviço público, precedida ou não de obra, é o instituto através do qual o Estado atribui o exercício do serviço a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo poder público. A empresa substitui o Estado na viabilização e na prestação daquele serviço e, para usá-lo, você paga uma tarifa.

Não há privatização de rios e aquíferos; cursos d’água são bens de uso comum do povo e, portanto, inalienáveis enquanto a lei assim os determinar. Realmente, isso significa que pode ser editada lei estadual ou municipal transferindo a titularidade de cursos d’água locais a um particular. É isso que o marco regulatório, uma lei federal, fez? Não.

Se renderá bons frutos, difícil prever; como dito na introdução, a iniciativa privada não é a salvação da lavoura. Caberá ao poder público regular vigorosamente os planos e os contratos de concessão por meio da Agência Nacional de Águas, que deve conservar sua autonomia em relação ao Executivo enquanto autarquia dotada de regime jurídico especial.

Para decepção dos adeptos de contos de fadas, o Estado continuará presente e necessário para garantir o atendimento adequado à população, valendo-se sem medo da caducidade – extinção dos contratos de concessão por descumprimento de obrigações contratuais: prometeu e não cumpriu, perdeu.

O autor é um cidadão que não tolera brasileiros morrendo de cólera, doença eliminada da Europa há mais de um século. É graduando em Direito na Ufes.

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