Autor(a) Convidado(a)
É professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Doutor e pesquisador na área educação das relações étnico-raciais

Jacarezinho: violência contra negros não é negligência, é projeto de Estado

Se existem ações que produzem morte e violência, podem e devem existir ações que produzam vida e paz social. São escolhas! Escolhas de projeto de Estado

  • Gustavo Forde É professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Doutor e pesquisador na área educação das relações étnico-raciais
Publicado em 08/05/2021 às 11h00
Operação da Polícia Civil no RJ contra o tráfico de drogas no Jacarezinho
Operação da Polícia Civil no RJ contra o tráfico de drogas no Jacarezinho. Crédito: Vanessa Ataliba/Zimel Press/Folhapress

matança ocorrida na última quinta-feira (06) em Jacarezinho (RJ) pode ser concebida e analisada de distintas formas. Aqui, destaco que a violência do Estado em bairros e territórios de maioria negra não é negligência ou tragédia ocasional, ao contrário, é projeto de Estado! Um Estado que, desde ainda o seu projeto de constituição na segunda metade do século XIX, deseja ser branco ou mestiço quase branco.

A presença estatal não deve ser bélica, o Estado precisa estar presente com bens e serviços de saúde, educação, saúde, cultura, saneamento básico e lazer. Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), implantados no Rio de Janeiro nas décadas de 1980 e 1990 pelo saudoso Leonel Brizola, nos deu um fio de esperança, mas logo foi sucumbido. Parece um absurdo falar em Estado de Bem-Estar Social em benefício da população negra? Mas é exatamente desta forma que o Estado se faz presente em bairros e territórios de maioria branca e de descendentes de europeus. Parece exagero falar deste modo? Seguem algumas perguntas acerca das distintas formas de presença (ou ausência) estatal no Estado do Espírito Santo:

  1. Por que se investiu recursos públicos para fortalecer o agroturismo e a identidade cultural nas regiões das Montanhas Capixabas (território de maioria branca) e não se fez o mesmo investimento em benefício das Comunidades Quilombolas no Norte do ES (território de maioria negra)?
  2. Por que o forte potencial cultural, esportivo e artístico do território circunscrito onde estão localizados o Teatro Carmélia Maria de Souza, o Clube Náutico Brasil, a Escola de Samba Novo Império e o Sambão do Povo (território de maioria negra), não recebe o "mesmo cuidado e investimento público" que recebem a Praça dos Namorados e a Praça dos Desejos (localizados em território de maioria branca)?
  3. Por que na Grande Vitória, por exemplo, cães e gatos (os chamados “pets”) possuem espaço dedicados ao seu lazer e socialização, por meio das pracinhas denominadas de “PraCão” (em bairros de maioria branca) e, em muitos bairros de maioria negra também na Grande Vitória, as crianças negras só conhecem a presença do Estado por meio da sua "força bélica"?

Isso não é mera ausência de políticas ou mera negligência do Estado: trata da ação resultante de um projeto de Estado Nação em curso. Talvez, para muitos setores da sociedade, seja difícil perceber ou aceitar tais dados da realidade (pois, de algum modo, pode lhes fazer sentir-se cúmplices de um pacto de silêncio que sustenta este projeto).

Neste projeto “racista-branco-eurocentrado-genocida” de Estado, as políticas destinadas aos territórios negros são focadas na produção de violência e produção de morte. A vida que ainda é produzida nos territórios de maioria negra é resultado da resiliência ancestral e da auto-organização das próprias comunidades negras.

DUAS FACES DE UM MESMO PROJETO

Não é razoável justificar a força bélica como suposta tentativa para se coibir o fato de crianças estarem serem recrutadas pelo crime em territórios de maioria negra. O procedimento lógico é o Estado "recrutar" estas mesmas crianças para espaços de educação, esporte, cultura, lazer e saúde. Fico me perguntando, em que medida, a secular ausência do Estado - foram 4 séculos de escravismo criminoso no Brasil - e presença crescente da violência em territórios de maioria negra não seriam duas faces de um mesmo projeto de Estado?

Se existem ações que produzem morte e violência, podem e devem existir ações que produzam vida e paz social. São escolhas! Escolhas de projeto de Estado! Afinal, não se produz vida nem paz social com violência e força bélica. Vida e paz social são mais fáceis de serem produzidas com políticas públicas de equidade de oportunidades e justiça social.

O Brasil é uma nação que precisa se curar. Precisa curar-se de sua patologia de desejar ser branco. Precisa curar-se do seu complexo de ‘Casa Grande & Senzala’. Para curar-se de "si mesmo", o Brasil precisa revisitar seus traumas. Revisitar a sua dívida com os negros e indígenas. Precisa revisitar a sua própria imagem perante o espelho e, depois, decidir qual projeto societário pretende construir de hoje em diante.

MATRIZ RACISTA

A violência, no Brasil, é de natureza ontológica! Não trata de mero acaso ou de mera negligência. Esta violência pode ser encontrada na matriz colonial-racista-eurocentrada que ofereceu os principais alicerces para a construção do projeto de Estado que constituiria no que hoje chamamos de "Estado brasileiro".

Se o Brasil se permitir esse processo de "cura de si", terá uma grande oportunidade em redefinir e reconstruir um novo projeto de Estado de agora em diante. Repito, neste projeto de Estado brasileiro forjado em final de XIX e início do século XX (período muito recente de nós!), esteve em curso um projeto de genocídio (físico morfológico) e um projeto de epistemicídio (histórico cultural) dos descendentes de africanos no Brasil.

A matança ocorrida em Jacarezinho (RJ) não foi negligência pontual ou tragédia ocasional, Jacarezinho é resultado da política implementada por este projeto de Estado herdeiro da violência que “Casa Grande” implementava contra a “Senzala”. Lembram de Cláudia Silva Ferreira que em 2014 foi morta e teve seu corpo arrastado por uma viatura policial? Lembram dos mais de 80 tiros que fuzilaram e mataram, em 2019, o músico Evaldo Rosa? Lembram da menina Ágatha Félix, de oito anos, também morta em 2019, após ter sido baleada nas costas?

Este texto é um desabafo, um desabafo daquele que hoje acordou cansado deste projeto de Estado. Estou sinceramente cansado deste Estado que não nos reconhece, na condição de negros e negras, como humanos brasileiros que somos! É chegada a hora de refundar este projeto de nação. É chegada a hora do Brasil “curar a si mesmo”. Está na hora, como tem dito o movimento negro brasileiro, de ensinar ao Estado brasileiro que o contrário de “Casa Grande” é “Quilombo”. Está na hora de “Fazermos Palmares de novo”!

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.