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Direito à saúde de pacientes de outras doenças está sendo usurpado

São brasileiros, cidadãos, pais, mães, irmãos, filhos, avós e netos, com perspectivas, planos e projetos, que não podem ser relegados pelo Estado brasileiro, largados à própria sorte

  • Pablo Drews Bittencourt Costa
Publicado em 03/07/2020 às 12h15
Pacientes de outras doenças não estão recebendo tratamento na pandemia
Pacientes de outras doenças não estão recebendo tratamento na pandemia. Crédito: Pixabay

Direitos fundamentais vinculam-se à ideia de proteção da dignidade da pessoa humana, tratando-se a proteção da dignidade elemento indissociável da justiça, liberdade e paz mundial, assim reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. O direito à saúde, direito fundamental social por essência, enquadra-se dentro daqueles que projetam dupla dimensão, uma positiva, que reclama do Estado, para a sua efetivação, uma atuação – facere, assim como uma dimensão defensiva, a impedir investidas limitadoras das liberdades e direitos por parte dos agentes estatais, organizações sociais e particulares.

Diz a Constituição Federal de 1988, em seu art. 196, ser a saúde direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, o que é reprisado como princípio norteador do SUS pela Lei n.º 8.080/90, conhecida como Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde.

Em tempos de Covid-19, emerge no cenário nacional flagrante corrosão da fundamentalidade constitucional do direito à saúde pelo poder público em seus três níveis (federal, estadual e municipal), na medida em que o atendimento de uma gama de cidadãos, portadores de outras doenças, foi simplesmente interrompido, suspenso, sem prazo no horizonte, sob o argumento da necessidade de reunião de recursos (financeiros e humanos) para o enfrentamento da pandemia, realizando uma cisão no seio social, relegando aqueles não infectados pelo Sars-Cov-2 a um calvário permeado por dor e incerteza, num cenário muito pior e com mais dificuldades do que aquele já experimentado pré-pandemia, com o agravamento de quadros, perda da janela temporal do melhor tratamento e até irreversibilidade da situação.

São brasileiros, cidadãos, pais, mães, irmãos, filhos, avós e netos, com perspectivas, planos e projetos, que não podem ser relegados pelo Estado brasileiro, largados à própria sorte. Não é adequada, sob o plano jurídico, moral e ético, uma” escolha de Sofia”, de quem vive e de quem deve morrer.

O próprio STF, por vezes, já reconheceu que “o poder público, qualquer que seja a esfera institucional de atuação no plano da organização brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população” e não somente daquele grupo, que por infortúnio, foi contaminado pelo Sars-Cov-2, mas de todos os brasileiros, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.

Já não nos serve a concepção hobbesiana de total transferência ou renúncia de direitos para o soberano, deixando a vida ser guiada pela vontade desse, diametralmente incompatível com o atual discurso dos direitos humanos.

Urge, portanto, a reconfiguração do modelo de atenção do SUS no momento atual, calçado quase que exclusivamente no atendimento dos pacientes com Covid-19, de modo a preservar o núcleo essencial fundamental do direito à saúde da população brasileira globalmente, para que, solidariamente, não só a dignidade humana de uma parcela, mas de todos, seja preservada, evitando-se com isso, inclusive, futuro colapso do sistema público de saúde, saturado pela onda de doentes não Sars-Cov-2, no período pós-pandêmico.

O autor é promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Espírito Santo

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