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Casada com Fillipe da Silva Martins Magalhães. É advogada em Direito de Família, especializada no atendimento de mulheres. Instagram: @amandasmag

César Roitman: o que 'Vale Tudo' ensina sobre sobrenomes no casamento e poder

Há um detalhe intrigante: o sobrenome “Roitman” não é nato de Odete, e sim herdado de seu falecido marido. E aí?

  • Amanda Soares Magalhães Martins Casada com Fillipe da Silva Martins Magalhães. É advogada em Direito de Família, especializada no atendimento de mulheres. Instagram: @amandasmag
Publicado em 11/09/2025 às 10h26

Em 1988, na primeira exibição de "Vale Tudo", se o personagem César Ribeiro tivesse se casado com Odete Roitman, não levaria o sobrenome milionário, ao contrário do que aconteceu no remake global. E não poderia: à época, a lei não autorizava que o homem adotasse o sobrenome da esposa. O máximo que se admitia era o inverso — a mulher “entrar” para a família do marido.

No remake de 2025, a autora atualizou a trama: César, interpretado por Cauã Reymond, agora adota o sobrenome “Roitman”.

O gesto da autora não é mero detalhe, mas tradução das mudanças trazidas pela Constituição de 1988 e pelo Código Civil de 2002, que permitiram a qualquer cônjuge acrescentar o sobrenome do outro (art. 1.565, §1º). Destaco a palavra “acrescentar” porque a lei não permite o remanejamento dos sobrenomes, apenas a inclusão como o último dos sobrenomes. César passa, então, a se chamar César Ribeiro Roitman.

Mas há um detalhe intrigante: o sobrenome “Roitman” não é nato de Odete, e sim herdado de seu falecido marido. E aí?

Do ponto de vista jurídico, isso não é impedimento: o que vale é o nome civil atual. Se Odete é “Roitman” em seus documentos, César pode igualmente sê-lo.

Casamento de Odete Roitman (Debora Bloch) e César Ribeiro (Cauã Reymond) em
Casamento de Odete Roitman (Debora Bloch) e César Ribeiro (Cauã Reymond) em "Vale Tudo". Crédito: Globo/Estevam Avellar

A trama, no entanto, expõe outra camada. César é um homem mais jovem, interessado na fortuna da família Roitman. Mas preciso grifar que adotar um sobrenome pode abrir portas, contudo, não garante acesso ao patrimônio; quem define os efeitos econômicos do casamento é o regime de bens e os contratos pré-nupciais.

A propósito, a título de curiosidade, embora não seja fã de novelas, me prestei a pesquisar mais informações sobre esse casamento, e descobri que Odete apresentou a seu noivo um contrato pré-nupcial, resguardando sua fortuna, mas concedendo ao futuro marido, caso ela morra, 50% das ações da empresa TCA — o que aponta os prováveis regimes de bens escolhidos pela vilã: separação total de bens ou comunhão parcial de bens. Mas isso é papo para outro artigo.

Essa “inversão dos papeis” ou, em outras palavras, quando o homem adota o sobrenome da sua esposa, ainda causa estranheza, mostrando que, mais que uma questão burocrática, estamos diante de um campo simbólico e político.

O nome é um marcador de identidade e também de pertencimento. Quando só a mulher “ganha” o sobrenome, a tradição reforça papéis de gênero e hierarquia.

É aí que a ficção toca na ferida. A lei avançou; a cultura, nem tanto. O sobrenome ainda é visto como instrumento de poder. Quando só a mulher muda, sua história se dilui na dele e ok para todo mundo. Quando é o contrário, a escolha aponta ataque à masculinidade e submissão. O incômodo revela que, mesmo em 2025, resistimos em admitir que homens e mulheres têm igual dignidade — até no nome.

Normalizar que o marido adote o sobrenome da esposa é reconhecer que a identidade dela também merece continuidade. É dizer que casamento não é posse, mas parceria. Que o nome não é troféu, mas memória compartilhada. Normalizar o fato de que homens também podem, e devem, adotar o sobrenome da esposa é uma forma de repensar as assimetrias. Penso que deveríamos enxergar o tema não apenas como escolha individual, mas como possibilidade de igualdade substantiva.

Eis a provocação que "Vale Tudo" nos traz. E trago outra: por que mesmo passados tantos anos da promulgação do Código Civil — 23 para ser mais exata — a maioria dos cidadãos nem sequer sabem da possibilidade?

Talvez porque, no fundo, continuemos presos à ideia de que mulher é propriedade e sobrenome domínio — quando deveria ser apenas escolha livre, expressão de respeito e equidade.

Talvez a verdadeira revolução esteja em perceber que o amor e a igualdade também se escrevem nas pequenas escolhas, inclusive no nome.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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