A adultização infantil – a exposição de crianças a comportamentos, responsabilidades e expectativas que deveriam pertencer ao universo adulto – é o atalho civilizatório mais barato e covarde que conseguimos criar: encurtar a infância para que a criança “sirva” mais rápido ao apetite social por performance, entretenimento e consumo.
Não se trata apenas de meninas maquiadas em vídeos de dança ou meninos performando masculinidades tóxicas em miniatura; trata-se de um projeto cultural implícito, quase sempre embrulhado no papel de presente do “talento precoce” ou da “preparação para a vida real”. É curioso e trágico que a tal vida real seja tão disfuncional que precise sequestrar a imaginação infantil para se manter de pé.
Há uma ironia cruel nessa pressa: adultos, saturados pela precariedade emocional que cultivaram, já não suportam o frescor desarmado das crianças. Por isso, preferem treiná-las a falar, vestir, seduzir e se portar como adultos antes da hora, como se a maturidade fosse um uniforme e não um processo. Talvez, como diria o sarcasmo inevitável, o fenômeno devesse se chamar infantilização adulta, afinal, nada mais infantil do que projetar nos pequenos a frustração de não ter sido criança o suficiente.
Philippe Ariès já nos lembrava, em sua “História Social da Criança e da Família”, que a própria ideia de infância é uma construção social, e que, portanto, pode ser abreviada ou corrompida. Décadas depois, Neil Postman, em “The Disappearance of Childhood” (ou “O Desaparecimento da Infância”, em português), advertiu que a cultura midiática contemporânea está dissolvendo essas fronteiras com velocidade assustadora, um processo que hoje encontra no ambiente digital o seu laboratório mais eficiente e, no engajamento virtual, o seu combustível mais barato.
O que agrava esse quadro é o funcionamento dos algoritmos que, longe de serem neutros, funcionam como agentes ativos na circulação dessas imagens. Eles não apenas detectam e amplificam conteúdos que performam a estética da adultização, mas também os redirecionam, como quem sabe exatamente para quais olhos entregá-los. Trata-se de uma engrenagem silenciosa e calculista, que alimenta com um refinamento quase cínico a demanda invisível de olhares que consomem tais imagens com propósitos inconfessáveis, mantendo em movimento esse cruel e criminoso jogo algorítmico.
A polêmica do vídeo do Felca, ao expor esse abismo, provoca mais do que indignação: escancara a ferida narcísica de uma sociedade que trata a infância como matéria-prima descartável para likes e engajamento. E, nesse ponto, a provocação é inescapável, talvez o que mais incomode não seja a denúncia, mas o fato de que todos sabemos onde isso começa: nas salas de estar, nos celulares familiares, nas falas orgulhosas de “olha como ela já é mocinha”, e nos aplausos cúmplices.
Não basta indignar-se. É urgente que o Congresso Nacional trate este tema como questão de política pública, com regulação séria, limites claros e mecanismos efetivos para barrar a exploração midiática, comercial e emocional de crianças. Se não o fizerem, assumem publicamente que a indústria da destruição da infância tem lugar cativo na política brasileira – e que, para eles, o futuro pode muito bem começar corrompido.
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