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'Maria #presente', confira a crônica de Maria Sanz Martins

"Maria #presente", confira a crônica de Maria Sanz Martins

"Daí pra frente, Nete bolou sozinha um plano mirabolante: decidiu que ensinaria os dois filhos a esquentar comida no fogão"

Publicado em 18 de fevereiro de 2019 às 15:30

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Confira a crônica escrita por Maria Sanz Martins . (Unsplash)

“Mulher é força, fibra, é revolução

Independência contra a opressão

Aos teus pés eu ponho essa avenida

Brilha!

Uma nova era no girar dessa coroa

Leões não nascem sem leoa!”

Depois desse pequeno trecho do samba enredo da Novo Império este ano, que vai representar nada menos que força feminina na avenida, passo a contar a história de Maria Ivonete.

Nete é uma baiana que veio morar no ES aos 15 anos de idade, trazida por Cláudionor, um jovem caminhoneiro que por lá passou e por ela se encantou. Nete, como milhares e milhares de mulheres desse nosso Brasil, não tinha qualquer perspectiva na terra onde vivia com os pais e sete irmãos. De modo que naquela tardezinha em que conheceu Cláudionor no forró, entendeu que ele era um grosseiro apressado – mas, como usava perfume de cidade grande, topou o rolê. E da boléia do caminhão, passaram uma semana de paixão no quarto azulejado do hotel da beira da estrada, depois na casa dela, onde ela fez uma mochila e se despediu dos pais para nunca mais. Vieram para Vitória, então.

Aqui chegando, ele que ainda morava com o pai e mãe, colocou Nete num cômodo nos fundos do quintal da casa e decretou que mulher dele não trabalhava, não saia sozinha, nem usava saia. Nete chorou escondido por dias e na semana seguinte se descobriu grávida. Cláudionor, que bebia dia sim, dia sim, nunca parou em casa. Um dia, pouco tempo depois, perdeu o caminhão no jogo e passou a descontar toda sua miséria na menina baiana da canela áspera.

Assim que o primeiro filho nasceu, a mãe do rapaz trouxe a moça pra dentro da casa, onde ela passou a ajudar nos serviços domésticos e culinários. E assim, com o menino no colo e a vassoura na mão, o tempo passou, moendo seus dias entre o desprezo e o mau trato. Perdida, sem poder trabalhar, sem contato com a família, resolveu que fugiria dali – e foi nesse dia, que ela se descobriu novamente grávida.

Daí pra frente, Nete bolou sozinha um plano mirabolante: decidiu que ensinaria os dois filhos a esquentar comida no fogão.

Parece simples, mas o objetivo era realmente audacioso, posto que o mais velho tinha três anos e o outro era recém nascido. Mas foi dito e feito. Todos os dias Nete treinava o mais velho dizendo 'filho, aprende a esquentar o feijão, comer e dar ao seu irmão, porque é assim que você vai virar doutor um dia'. E ensinava e repetia.

Em poucos anos os meninos já esquentavam a comida que ela deixava pronta todos os dias antes de sair pra trabalhar como caixa no supermercado do bairro – a esta altura, (como era mesmo o nome dele?) Cláudionor, que passava as noites caído de bêbado, lambido pelos cachorros na pracinha, e os dias deprimido do sofá pra cama da casa da mãe, já não dava conta de conter Nete com seus xingamentos e humilhações.

E ela trabalhou de sol a sol, estudou matemática, saiu do caixa, virou chefe de setor, depois gerente do mercado. Alugou uma casa nova, deu entrada num terreno, e se prepara para construir sua morada própria. Seus dois filhos cresceram fortes, estudaram firme, passaram no vestibular e o mais velho se forma esse mês em Engenharia da Computação. Ele, que é um homem lindo, aguerrido, de grande coração e emprego garantido, todos os dias, quando sai pra estudar, jura que vai pôr o mundo aos pés de sua rainha.

E Nete, diante do espelho, segurando um grampo na boca, enquanto prende o cabelo para ir ao serviço, diz sorrindo, na despedida, "filho, não precisa".

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