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Confira a crônica 'Montaria própria' de Maria Sanz Martins

Confira a crônica "Montaria própria" de Maria Sanz Martins

"Ora, o medo de perder é pior que o medo de já ter perdido. Ou seja, esperar pelo cavalo selado pode ser pior que a certeza de que não haverá cavalo"

Publicado em 23 de outubro de 2018 às 16:51

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. . (Unsplash )

Outro dia alguém ameaçou a paz com aquele ditado "ó, cavalo selado não passa duas vezes" – aí eu discordei e a conversa esquentou. É que não sei ouvir essa ideia que liga a oportunidade de ganhar ao medo de perder.

Este é um pensamento simplório, comparativo e angustiante. Pense comigo, ele não fala de um cavalo comum, ou do seu cavalo de estimação, mas do "melhor" cavalo possível – aquele certo, garantido. Fala do risco de não aproveitá-lo, ameaça sobre a incapacidade de distingui-lo e, sobretudo, fala de uma "perda" iminente.

Ora, o medo de perder é pior que o medo de já ter perdido. Ou seja, esperar pelo cavalo selado pode ser pior que a certeza de que não haverá cavalo. Donde concluo que a cura para essa angústia talvez seja tornar-se convicto. Assim, poderemos finalmente lidar com isso. (O que é libertador, no mínimo). 

Em português claro: não existe "melhor" cavalo. Porque "o melhor" é caricato, uma ilusão vendida. Aliás, nada mais vulgar e nocivo que a tentativa de obter ou ser "o melhor". Porque este desejo, que plantam na gente desde pequenos, é um superlativo extremado que beira o ridículo. Na verdade, qualquer ideia que nos faça acreditar que isso é mesmo possível deseja ser "comprada", só isso.

Percebe? Na maioria das vezes em que nos deixamos atrair pela "oportunidade" de sermos importantes, maiores, melhores, especiais, escolhidos ou privilegiados, estamos nos rendendo, nos associando, ou nos moldando a algum tipo de critério externo – via de regra, interessado.

Interessado em suas próprias regras. Como sistema que confere prestígio aos seus fiéis e maldiz os falhos. É da nossa cultura... Fomos educados para jamais perder um "cavalo selado" – seja lá o que for isso – de modo que ficamos olhando pra fora, esperando, julgando, comparando, medindo. O tempo todo nos adequando ao sistema de recompensas, pirâmides de privilégios e cadeias de garantias.

Tudo para não perder a chance de... De quê mesmo? Enfim, "estou esperando o homem da minha vida" – ouvi uma amiga dizer entre goles, dia desses, enquanto olhava para os lados, como treinasse a atenção e a agilidade para pular na sela ideal, que um dia há de passar por ali...

Não disse na hora, mas pensei: amiga, "ele" são todos e nenhum deles. "Ele" não existe e, ao mesmo tempo, está bem aqui, neste bar. "Ele", ou este fenômeno pelo qual você espera é, na verdade, a manifestação de uma força íntima, uma interseção cósmica, uma aprendizagem – o resultado do amor próprio quando transborda.

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Porque amor, paz, alegria, saúde, sorte, não têm nada a ver com a dupla "poder e oportunidade", mas com modéstia, humildade, compaixão e graça. E, como bem se sabe, nada disso vem de fora... De modo que concluo: ao invés de esperar por um cavalo que já venha selado, mais vale tecer uma montaria própria, com paciência, autoconhecimento e equanimidade.

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