Publicado em 4 de agosto de 2021 às 18:58
A moda anda incomodada. A urgência por uma roupa feita em condições mais humanas, detonada pelo desabamento que matou milhares num prédio de oficinas de costura em Bangladesh há quase dez anos, fez rodar o mundo a tag que perguntava quem fez suas roupas. A conta de que essa indústria é a segunda mais poluente, ainda que não haja dados suficientes para confirmar isso, também fez quem compra e costura duvidar se a roupa é mesmo sustentável. >
Agora, a reboque da emergência em mudar padrões de comportamento excludentes que acompanham a criação ao longo do tempo, estilistas aproveitam o conceito de virada de chave provocada pela pandemia para engrossar esse questionário ao perguntar do que fala a sua roupa. >
Questões sobre identidade de gênero, preconceitos racial e de orientação sexual, o viés classista que separou os guarda-roupas de pobres e ricos, as modelagens de sílfide, valores sobre originalidade e cópia, ancestralidade e mesmo o peso de criar em ritmo de padaria, saíram do espectro das ideias para virar roupa. E, nesse contexto, o evento de desfiles Casa de Criadores virou espécie de catalisador das demandas num tempo que põe na berlinda a própria função da roupa. >
Se, no século 20, a camiseta era a maior forma de expressão do inconformismo, onde se estampava em palavras o que queriam dizer os jovens, neste, é na mesa de corte que o desconforto se materializa. Não importa muito se a roupa se encaixa no ideal de elegância do passado, porque essa nova geração de designers -e a passarela virtual do evento confirmou na última semana- escreve em linhas costuradas para uma juventude fashionista pouco afeita a ela. >
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Um dos discursos que talvez reúna boa parte das mudanças é o de Vicenta Perrotta. A designer comanda o Ateliê TRANSmoras, que não só movimenta dezenas de profissionais transgênero, como também reimagina o papel do designer em criar o novo. >
Nada do que cria parte da matéria-prima virgem, mas sim dos restos têxteis, de pedaços de guarda-chuvas até tecidos nobres como os cedidos por Dudu Bertholini, ex-estilista da Neon, para a coleção criada em parceria com marcas colaborativas como as dela, a Use Franka e Vista Vaskes. >
É nítido no horizonte dessas novas grifes de São Paulo um esforço para quebrar as silhuetas padrão pensadas para o corpo feminino e jogar luz sobre corpos transgênero. Duas marcas, o Ateliê Criativa Vou Assim e a Trash Real Oficial, também geridas por pessoas trans em esquema colaborativo, são emblema da estética de tons ácidos, em que meias arrastão, jaquetas detonadas, calças desconstruídas e o mesmo material de reúso deslocam a percepção sobre a imagem asseada do luxo. >
É como se os designers quisessem jogar sal na receita algo insossa que permeia a criação dita mainstream. Ou um pouco de veneno, como faz Rafael Caetano em sua nova coleção. >
O estilista buscou referências à tragédia e ao glamour inerentes à vida da diva transexual espanhola Cristina Ortiz, a La Veneno, para transferir às roupas masculinas um espírito de libertação dos códigos de masculinidade. Calças abertas nas nádegas, paetês e unicórnios integram o caldeirão estético desse estilista conhecido da comunidade gay paulistana que frequentava as festas de outrora. >
As bandeiras não são sempre levantadas ao pé da letra, porque os estilistas já partem do pressuposto que sua clientela entende o discurso, embora às vezes considerem necessário levantar de novo os estandartes. >
Uma das estilistas mais interessantes dessa geração é Jal Vieira, que expôs em seu fashion filme -todas as marcas apresentaram curta metragens- modelos segurando bandeiras que remetiam aos protestos recentes contra o governo Bolsonaro. >
As frases vinculadas ao racismo, à transfobia e à luta indígena pela demarcação de terras, fatos intrincados ao noticiário, apareceram nas faixas que fizeram par com as roupas convertidas em armaduras, bem ao estilo militar. Aqui, mais uma vez, o texto é o tecido. >
E quem talvez tenha feito melhor essa transferência foi a Dendezeiro. A grife dos estilistas baianos Hisan Silva e Pedro Batalha extrapolou a questão racial, que deu a tônica das estreias mais importantes da temporada de desfiles nacionais, para produzir um manifesto sobre a valorização das linhas e estampas do corpo. >
O vitiligo, as estrias e as sardas, motivos de vergonha para muitos, foram destacados como estampas e traços costurados às roupas tingidas com cores de peles, variações do "nude" que a indústria da moda, ainda na década passada, vinculou à derme esbranquiçada. O racismo, eles lembram, também pode se esconder nas tramas. >
O que faz a passarela da Casa de Criadores se tornar esse espaço convulsivo de experimento é sua curadoria, um termômetro do que será visto em plataformas maiores, seja a das equipes de estilo das marcas com poder aquisitivo, seja as das passarelas de outros eventos como a São Paulo Fashion Week, com uma programação que pinça dali parte de sua força. Isaac Silva, João Pimenta e Gustavo Silvestre, por exemplo, saíram do guarda-chuva fundado por André Hidalgo, o fundador da Casa de Criadores. >
A maior preocupação desse diretor artístico nunca foi exatamente apresentar novos nomes, mas oferecer novos pontos de vista sobre a produção de moda brasileira. Um dos temas ainda pouco comentados nas rodas exclusivas da costura, e que já ganha o mundo, é a busca por originalidade. O que é plágio e o que é autêntico num campo em que já se criou, se recriou e se desfez de tudo. >
A estreia da Fkawallys Punk Couture foi significativa para levantar a questão. Batizada com o apelido do designer Fábio Gurjão, a grife busca peças de outras marcas e as reinventa, aplicando novas estampas em silk e aviamentos. A etiqueta se sobrepõe à original colada e flana pelo estroboscópio das noites paulistanas como criação autêntica. >
O subtexto aqui é se as marcas servem mesmo como veículos de expressão individual, como seus donos sempre disseram servir, ou se elas se apoiam nesse discurso para que suas etiquetas virem o principal motivo da compra. O debate é longo, mas Gurjão lança a dúvida com uma estética pirateada revista sob uma ótica tropical bem amarrada num visual trash para causar impacto. >
Mesmo os estilistas que preferem se dedicar à construção da roupa parecem seguir esse caminho para questionar a régua que aprenderam nas faculdades. As novas costuras apresentadas por Ellias Kaleb, Diego Gama, Fábio Costa, da Not Equal, Felipe Caprestano e Diego Fávaro, cinco das melhores tesouras no sentido matemático da produção de moda vista no evento, não se atêm a reproduzir as modelagens clássicas >
Eles adaptam a equação das bases de algodão, seda e linho para mudar as formas, abrindo fendas, ampliando ombros e revelando partes que antes eram cobertas nos livros de costura. >
A moda pós-pandêmica, pelo menos esta brasileira apresentada pela Casa de Criadores, não deverá ser um emaranhado de roupas para dormir como se viu no último ano e meio, mas só memórias, ainda que diluídas, de um passado que o design de moda quer sepultar e não transformar só em textão.>
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