Clara Nunes
Clara Nunes. Crédito: Arquivo

Clara Nunes: 40 anos de saudade

Em 2012, ao visitar a sua terra natal, Caetanópolis (MG), onde acontece anualmente o Festival Clara Nunes, pude perceber um facho da espiritualidade dessa mulher única que o ex-marido e compositor Paulo César Pinheiro definiu como “um ser de luz”

Tempo de leitura: 4min
Publicado em 04/04/2023 às 13h17
  • José Roberto Santos Neves

    É jornalista, escritor e pesquisador musical

Clara Nunes está presente nas memórias afetivas da minha infância. Não entendia ao certo a mensagem de suas canções, mas fascinava-me assistir aquela mulher exuberante no “Globo de Ouro” ou nos clipes exibidos no “Fantástico”, com seus vestidos longos, brancos, colares, amuletos, coroas de flores e balangandãs, cantando o samba verdadeiro, com a natureza como cenário. Clara era a voz do povo, e sua partida, em 2 de abril de 1983, há 40 anos, provocou uma das maiores comoções populares de nossa história contemporânea.

As imagens da multidão acompanhando o féretro nos viadutos do Rio de Janeiro, tremulando os lenços brancos, e o seu corpo sendo carregado nos braços do povo, em direção à quadra da Portela, onde foi velada, são comoventes. Mas foi somente anos mais tarde, ao me formar em jornalismo e me especializar na crítica musical, que tive de fato a dimensão da representação social de Clara Nunes para o Brasil.

Clara foi a voz que melhor personificou a filiação do Brasil à África, e o sincretismo religioso que marca a constituição de nossa história. Ela simboliza os santos e orixás, o poder da criação, o Brasil Mestiço e o Canto das Três Raças que ecoa na miscigenação racial da população. A Clara que encantou multidões e que se celebrizou como a primeira mulher a vender mais de 500 mil discos, com o álbum “Alvorecer” (1974), incorporava o Brasil negro, o Brasil indígena e o Brasil de Tiradentes, com profundo respeito pelas tradições e crenças populares.

Era, também, a Clara Guerreira, sempre alerta para a proteção do meio ambiente, e a mulher que “acendeu no coração do povo a esperança de um mundo novo e a luta para se viver em paz”. Clara era mineira de nascimento, mas quem a via no palco entoando “Ê Baiana” poderia jurar que ela vinha da terra de Caymmi. Da mesma forma que os desavisados poderiam supor que era do Rio de Janeiro, em função de sua afinidade com os sambas-enredos e o amor pela Portela.

Quando perguntada se queria ser conhecida como sambista, respondia com convicção: “Não sou uma cantora de sambas. Sou uma cantora de música popular brasileira”. Apaixonada por Angola, Clara seguia sua incansável pesquisa sobre a cultura de matriz africana, lançando luz sobre jongos, afoxés e ijexás. Do Nordeste, outra terra que amava, agregou frevos, baiões e forrós a uma notável discografia que inclui 16 álbuns de estúdio e 92 compactos simples. Arrisco-me a dizer que, tivesse ela sido apresentada ao congo do Espírito Santo, teria incorporado ao seu repertório as ancestrais toadas do folclore capixaba.

Em 2012, ao visitar a sua terra natal, Caetanópolis (MG), onde acontece anualmente o Festival Clara Nunes, pude perceber um facho da espiritualidade dessa mulher única que o ex-marido e compositor Paulo César Pinheiro definiu como “um ser de luz”. Ao falar de Clara Nunes, todos que lá estavam emanavam um misto de emoção e gratidão, a exemplo dos integrantes da Velha Guarda da Portela, uma das atrações daquele festival. “Quando Clarinha ia à nossa quadra era uma festa. Todo compositor sonhava em ter uma música gravada por ela”, revelou Monarco, com olhos marejados.

Coautor de “Conto de Areia” e “A Deusa dos Orixás”, Toninho Nascimento relembrou que sua carreira podia ser definida entre antes e depois de Clara Nunes ter gravado seus sambas. O radialista Adelzon Alves, companheiro de Clara no início dos anos 1970, e produtor responsável pela construção de sua imagem audiovisual, discorria horas sobre a mulher da qual jamais se esquecera.

Mas o depoimento mais tocante de todos veio da irmã mais velha de Clara Nunes, Maria Gonçalves da Silva, a Dindinha, responsável pela criação da menina Clara após a morte dos pais. Dindinha nos disse que, certa vez, ao ver a irmã saindo de um show, extenuada, chamou a sua atenção para cuidar da saúde. A resposta de Clara foi firme: “Minha irmã, nunca mais diga isso novamente. Eu estou no palco para me entregar de corpo e alma ao que mais amo. Minha missão é cantar”.

Dindinha nos deixou em 2017, mas o legado da filha ilustre de Caetanópolis segue vivo no Memorial Clara Nunes, que reúne acervo com milhares de itens usados pela cantora ao longo de sua carreira.

Nessa data que marca os 40 anos de sua passagem, penso que passou da hora do Brasil redescobrir Clara Nunes. Sua obra atemporal está disponível para fruição e objeto de estudo, e diz muito sobre nossas raízes, identidades culturais e sobre a esperança de um país mais justo e inclusivo. Ouvi-la cantar é a forma mais nobre e verdadeira de manter viva a obra do Ser de Luz que “se foi pra cantar, para além do luar, onde moram as estrelas”, como reza a canção de Paulo César Pinheiro, João Nogueira e Mauro Duarte.

A Gazeta integra o

Saiba mais
Cultura Música religião

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.