Publicado em 7 de agosto de 2024 às 11:22
"Mulherada, pretos e pretas, é possível". Com um sorriso estampado no rosto, a judoca Beatriz Souza mandou o recado a milhões de brasileiros logo após conquistar a primeira medalha de ouro do país nos Jogos Olímpicos de Paris 2024.>
Também feliz em "representar a negritude", a ginasta Rebeca Andrade – ganhadora do segundo ouro em Paris – falava em entrevistas antes das competições sobre a importância de ser "mais uma referência negra para todas as crianças e adultos", assim como a antecessora Daiane dos Santos foi para ela.>
Daiane, hoje comentarista da ginástica na TV Globo, viralizou num discurso emocionado logo após o ouro de Rebeca. >
"Ela representa todos. Mas e a representatividade de 56% de uma nação, que é excluída, subjugada, que muitas vezes quando ganha é pertencente. [Mas] e quando não ganha? [...] Tomara que as pessoas reconheçam o valor dessas mulheres pretas.">
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A conquista de Rebeca também ganhou páginas de jornais de todo o mundo e as redes sociais com a foto em que as ginastas americanas Simone Biles e Jordan Chiles (segundo e terceiro lugar no solo, respectivamente, todas negras) prestam reverência à brasileira no pódio.>
"Ainda não superei esse lindo momento de irmandade e espírito esportivo! Você pode sentir o amor brilhando através dessas moças", escreveu a ex-primeira-dama dos EUA Michelle Obama no X.>
Provocadas a falar sobre racismo e representatividade ou escolhendo por conta própria trazer o tema ao debate, as atletas negras brasileiras têm sido responsáveis não apenas por colocar o Brasil no pódio, mas por mostrar a milhões de mulheres que aquele lugar é um "lugar possível", dizem pesquisadores que estudam a presença dos negros nos esportes olímpicos à BBC News Brasil.>
Um protagonismo que acontece em meio à "Olimpíada das mulheres" – em que o Brasil pela primeira vez na história levou uma delegação com maioria feminina, justamente nos primeiros Jogos com paridade de gênero no número total de atletas.>
Das 13 medalhas conquistadas até o momento, 10 foram por mulheres — incluindo a equipe mista de judô.>
"O sucesso delas é um ótimo momento para a gente refletir a questão racial de forma mais ampla na sociedade", diz a professora Doiara dos Santos, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), que pesquisa questões de gênero e raça nos esportes.>
"Por muito tempo os atletas foram ensinados a silenciar, com aquela ideia do esporte disciplinador, em que só importa o 'esporte pelo esporte', sem mensagens de qualquer ordem social. É cada vez mais importante o atleta se situar como sujeito no mundo".>
Para o professor e pesquisador Neilton Ferreira Júnior, autor do estudo Olimpismo negro: uma antologia das resistências ao racismo no esporte na Universidade de São Paulo (USP) e professor na UFV, nesse momento de celebração é importante lembrar que o "ineditismo de mulheres negras não é mágica".>
"É um processo de construção sinuoso e mais complexo. Se a gente só valorizar o feito pelo feito, a gente vai esquecer que existem outras Rafaelas e outras Rayssas", diz Ferreira Júnior, lembrando outras medalhistas em Paris.>
Rafaela Silva conquistou o bronze por equipe mista no judô (junto a Bia Souza, Larissa Pimenta, William Lima, Rafael Silva, Léo Gonçalves, Guilherme Schimidt e Rafael Macedo). O time ainda contava com Ketleyn Quadros, a primeira mulher brasileira a conquistar uma medalha individual em Olimpíada, em Pequim 2008.>
A medalha de Rafaela marcou a volta por cima da atleta que foi alvo de ataques racistas após perder a medalha em Londres 2012, conquistou o primeiro ouro do Brasil nos Jogos do Rio 2016, foi suspensa por doping antes de Tóquio 2020 e voltou ao tatame em Paris 2024.>
Já Rayssa Leal, prata no skate em Tóquio e bronze em Paris, se tornou a atleta mais nova a conquistar medalhas em Olimpíadas diferentes, com seus 16 anos.>
Em alguma medida, todas elas já falaram sobre serem inspiração para meninas negras e do racismo no esporte.>
Um sinal, como dizem os pesquisadores à BBC News Brasil, que uma medalha não é "apenas" uma medalha. Ao colocarem no peito, elas carregam junto outras atletas e reescrevem a própria história da Olimpíada.>
Uma demanda, como explica o professor Ferreira Júnior, que pode levar inclusive a um processo de "cansaço psíquico" – algo que precisa ter atenção de confederações esportivas.>
Mas para entender o simbolismo das conquistas nos Jogos em 2024, voltemos um pouco à história.>
Os Jogos Olímpicos – e a maioria dos esportes modernos – são fruto de um processo histórico estabelecido pelas nações da Europa e os Estados Unidos no final do século 19 e início do século 20.>
A tentativa de transformar a ideia dos esportes em algo "universal" – com competições internacionais e instituições como a YMCA, por exemplo – ocorre na onda de expansão colonialistas dos países, segundo explica o professor Neilton Ferreira Júnior.>
"É a ideia do Ocidente como com uma grande ideologia ou uma cultura das culturas", diz.>
O professor exemplifica o pensamento com declarações ditas pelo próprio barão francês Pierre de Coubertin, o responsável por recriar os jogos da era moderna em 1896 em Atenas, na Grécia.>
Coubertin acreditava, diz Ferreira Júnior, que o esporte era uma forma excelente de "educar e civilizar" os povos colonizados. Em textos, dizia que africanos deveriam experimentar várias modalidades individuais – e não coletivas, que podiam inspirar insurreições.>
Ou seja, na concepção da Olimpíada, havia uma ideia de separação racial nos esportes – algo que viria ser reforçado mais tarde por ideias de pré-disposição de negros a determinados esportes de força ou velocidade, por exemplo.>
Essa expansão do olimpismo, com o predomínio desde sempre das potências europeias no quadro de medalhas, se sobrepôs a outras práticas corporais presentes no mundo, que não tinha objetivo de competição ou superação dos limites, explica o pesquisador.>
Até hoje, o "Comitê Olímpico Internacional (criado por Coubertin) é uma instituição hegemonicamente Europeia no seu corpo burocrático, e o programa Olímpico tem os esportes ocidentais europeus e brancos que reproduzem esse sistema historicamente", avalia a também professora Doiara dos Santos.>
Mas a história dos Jogos Olímpicos – ou as medalhas recentes de brasileiras e o pódio 100% negro na ginástica – mostram que as classes que foram oprimidas encontraram nas práticas esportivas modernas "uma nova afirmação".>
"Se eu sou levado a um lugar e não posso voltar porque as pontes foram destruídas, eu construo a partir daí um processo de popularização do esporte, com os não brancos afirmando a sua identidade e o seu posicionamento político", diz o professor Neilton Junior.>
Alguns exemplos são o futebol, um esporte criado na Inglaterra e que tem na Seleção brasileira sua equipe a mais vitoriosa; ou o críquete, esporte inglês que se tornou fenômeno em ex-colônias como Índia e Trinidad e Tobago.>
Nos esportes individuais, são nomes como o boxeador Muhammad Ali e os velocistas Tommie Smith e John Carlos, que subiram ao pódio para se posicionar contra a segregação racial nos EUA. Ou também quando Jesse Owens desafiou nos Jogos de Berlim, em 1936, o próprio Hitler e sua noção distorcida de supremacia ariana, ao garantir quatro medalhas de ouro no atletismo. >
Também temos a brasileira Irenice Rodrigues, que chegou a organizar uma greve no Brasil contra o antigo Conselho Nacional de Desportos por melhores condições para atletas. >
E ainda Simone Biles, Usain Bolt, Daiane dos Santos, Rafaela Silva…>
"Esses pioneirismos são muito bons de vivenciar e celebrar. Mas eles escancaram marcas de desigualdades que só agora a gente está começando a diluir num processo que remonta a vários esforços, como o acesso ao esporte via projetos sociais", avalia Doiara Santos.>
Atletas como Rebeca Andrade e Beatriz Souza chegaram onde chegaram por meio da participação de projetos e políticas sociais de apoio ao esporte.>
Por muitos anos, a ciência colaborou para um projeto de de racismo científico, diz a professora Doiara dos Santos, que já pesquisou especificamente a falta de atletas negros na natação.>
A ideia de que corpos negros teriam desvantagem nas piscinas, devido a uma densidade corporal maior, era usada nos EUA para defender a participação dos negros restrita a outros esportes, como lutas ou atletismo.>
No Brasil, negros eram proibidos em piscinas de muitos clubes até 1950. Doiara dos Santos resgata a velocista Melania Luz, primeira mulher negra a defender o Brasil numa Olimpíada, que relatou a limpeza da piscina de um clube em São Paulo após negros nadadarem ali.>
A professora se deparou ainda com pesquisas nos EUA que mostraram que o principal motivo da falta de negros na natação não era a biologia, mas a falta de ídolos para crianças negras no país.>
"As famílias não viam na natação referências de sucesso. Elas viam no basquete, no futebol americano e eram ali que elas iam investir seus filhos no esporte", conta.>
Essa inspiração é o caso, por exemplo, de Rebeca Andrade, que em muitas entrevistas já falou de Daiane dos Santos como uma propulsora na sua carreira na ginástica artística.>
“Embora a gente tenha esses contrastes sobre biotipo, questões fenotípicas, associadas a fatores que privilegiam ou desprivilegiam brancos e negros nos diferentes esportes, eles não são definitivos", diz a professora. >
O debate biológico, defende, precisa estar acompanhado de variáveis culturais e sociais. >
O professor Neilton Júnior explica que "existe uma certa orientação que circula no Imaginário esportivo, especialmente de alto rendimento, de que o corpo negro está destinado ao desempenho de determinadas tarefas, em especial as de força".>
"Mas não são diferenças biológicas que imediatamente determinam o resultado de uma prova intelectual ou de uma prova esportiva. A ideia de que vou preparar um atleta para que ele possa obedecer algum tipo de destino é totalmente falsa e já foi desmentida desde os anos 1970", diz.>
O momento do protagonismo do esporte feminino e das atletas negras é oportuno para discutir avanços no Brasil em relação ao apoio e políticas públicas, avalia Doiara dos Santos.>
"A gente não pode naturalizar trajetórias de precariedade de atletas negro, com narrativas que romantizam a experiência de dores e sofrimento, para dizer 'apesar disso, conquistei essa medalha'", avalia a pesquisadora.>
O professor Neilton ressalta que esse ineditismo das brasileiras acontece num país onde o futebol masculino ainda domina totalmente o cenário esportivo e onde nunca houve um programa antirracista coletivo, elaborado por atletas e institutições, como ocorreu com atletas negros dos EUA.>
"É uma luta que se dá individualmente, que se dá como uma resposta circunstancial, como uma reação". Um exemplo claro é Vinicius Junior, brasileiro alvo de ataques racista no futebol da Espanha. >
Outro aspecto que precisa ser superado, segundo pesquisadores, é "a ideia de que o corpo negro é um corpo braçal, destituído de capacidade intelectual".>
Pesquisas já mostraram, por exemplo, que em narrações na televisão de esportes coletivos, quando se elogia atletas negros, na maioria das vezes se fala do físico.>
"Esses pioneirismos revelam um processo de superação, mas que não existe bandeira fincada, conquistei e ponto. Para garantir atletas depois de Rebeca, políticas de esporte precisam democratizar mais o esporte", diz a pesquisa Doiara dos Santos>
"As vitórias fazem parte de uma de uma constelação de processos bem sucedidos. Tem uma coletividade, mas ela não é consciente, é uma espécie de inconsciente coletivo do negro", completa Ferreira Júnior.>
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