Publicado em 21 de fevereiro de 2023 às 08:43
Em um aguardado discurso sobre o aniversário de primeiro ano da Guerra da Ucrânia, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, levou o foco do conflito para o embate para o Ocidente, sacando novamente a carta nuclear contra os EUA e seus aliados.>
Ele anunciou a suspensão da participação de seu país no último acordo de controle de mísseis estratégicos vigente, o Novo Start, que já cambaleava desde que a guerra começou pela falta de inspeções mútuas de instalações com armas nucleares dos EUA e da Rússia.>
Putin disse que "a Rússia não irá atacar primeiro", mas que está pronta para reagir e que a "situação pode sair de controle". "Eles [os ocidentais] querem transformar um conflito local em um global, nós entendemos desta forma e vamos reagir de forma adequada", afirmou. "A Rússia não pode ser derrotada.">
"O Ocidente soltou o gênio da garrafa. Estamos falando da existência de nosso país. Eles não escondem seu objetivo: infligir uma derrota estratégica à Rússia, ou seja, acabar conosco de uma vez por todas", disse. Segundo o Instituto para Economia Internacional de Kiel (Alemanha), mais de US$ 60 bilhões dos US$ 150 bilhões em ajuda à Ucrânia desde a guerra foram de natureza militar, US$ 47 bilhões apenas dos EUA.>
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O Novo Start, vigente desde 2010 e válido até 2026, prevê que tanto EUA quanto Rússia, que detêm 90% do arsenal nuclear mundial de 13 mil bombas atômicas, mantenham no máximo 1.600 ogivas do tipo estratégico, aquelas destinadas a arrasar cidades e acabar com guerras, em prontidão. É mais do que o suficiente para obliterar a civilização, mas ao menos estabelecia um princípio de confiança mútua --Donald Trump havia deixado os outros dois acordos com o mesmo fim.>
A agressividade contrastou com a repetição do resto da fala, de quase duas horas, e por um motivo. Para quem esperava algum anúncio dramático sobre a invasão em si, de uma declaração formal da guerra ainda tratada por "operação militar especial" a uma aliança com a China contra os Estados Unidos, passando por alguma vitória em campo ou uma nova mobilização, a montanha do Kremlin pariu um rato.>
Putin ficou na retórica usual, repassando temas que havia já percorrido em 30 de setembro, quando promoveu a anexação de quatro regiões ucranianas de forma ilegal. Mas caprichou no tom, como costuma fazer em ocasiões formais.>
O presidente se dirigia à Assembleia Federal, o Congresso russo, no enorme centro de convenções Gostini Dvor (Sala de Estar), no coração de Moscou. Na plateia, havia políticos, militares, veteranos da guerra e representantes das áreas anexadas. Putin deverá falar ainda em um evento no estádio que sediou a final da Copa de 2018, o Lujniki.>
A fala veio um dia após a desafiadora visita de Joe Biden a Kiev --o presidente americano falará ainda nesta terça na Polônia, para onde foi, sobre a guerra.>
A reação dos adversários foi igualmente previsível. "Ele está numa realidade completamente diferente. Está num beco sem saída", afirmou à agência Reuters o assessor presidencial ucraniano Mikhailo Podoliak.>
No campo militar, a falta do que dizer de novo por parte do russo mostra os limites de sua escalada militar recente. Ainda que esteja perto de conquistar pontos estratégicos no leste da Ucrânia, é um processo lento e incerto, ainda mais com a proximidade do fim do inverno e a possibilidade novas operações.>
Críticos dizem que o esforço atual é inútil, levando apenas boa parte de seus 320 mil reservistas convocados no ano passado para um "moedor de carne" sem ganhos. As próximas semanas, ou meses, dirão quem tem razão.>
Putin voltou a dizer que não queria o conflito, que havia como resolvê-lo por meio dos acordos Minsk, e que foi ignorado pelo Ocidente. Nisto ele está certo, em termos: durante a escalada militar que precedeu a invasão, ele publicou um ultimato pedindo negociações sobre o status da Ucrânia em 17 de dezembro.>
Não houve resposta, até porque ao lado do pedido de neutralidade da Ucrânia havia a demanda para que a Otan (aliança militar liderada pelos EUA) retirasse suas forças dos países da antiga esfera soviética absorvidos a partir de 1999, algo inexequível.>
O resto é história. Há um ano, Putin reconhecia neste mesmo dia duas repúblicas separatistas do Donbass (leste ucraniano), algo que não fizera desde que anexou a Crimeia e fomentou a guerra civil em Donetsk e Lugansk, como resposta à derrubada do governo pró-Kremlin de Kiev em 2014.>
Esse acabou sendo o sinal para a invasão, ocorrida nas primeiras horas do dia 24 de fevereiro, mudando toda a arquitetura de segurança do mundo.>
O russo focou boa parte de sua fala em questões domésticas, descrevendo dificuldades e resiliência ante o pacote de sanções ocidentais contra a Rússia, algo sem paralelo na história. "Eles previram o fim da nossa economia. Nosso PIB caiu, mas menos do que em 2020 (queda de 2,1% ante 2,7% no ano da pandemia)", afirmou.>
Ele lembrou que a Rússia está ampliando negócios com outros países. De fato, como disse o presidente francês, Emmanuel Macron, no fim de semana, países não-ocidentais desconfiam das grandes potências e suas sanções. Isso vale para Índia, que aumentou em 14 vezes seu consumo de petróleo russo, e mesmo para o Brasil e sua necessidade de ter fertilizantes.>
No mais, o presidente voltou aos temas ideológicos que costuma usar em suas falas. Criticou o que chama de degradação de valores familiares no Ocidente, dizendo que até pedofilia tornou-se aceitável, mas fez um inusitado aceno à combalida comunidade LGBTQIA+ russa.>
Ao comentar o casamento de pessoas do mesmo sexo, disse: "Tudo bem, eles são adultos, têm o direito de viver a vida deles. Nós somos sempre muito tolerantes sobre isso na Rússia". Para um governo que desde 2013 criminaliza o que chama de propaganda gay e tem histórico de perseguir homossexuais, foi bem ameno.>
Chegou a agradecer, na longa lista apresentada do esforço de guerra, os "jornalistas militares arriscando a vida para contar a verdade para o mundo". Desde o começo da guerra, o Kremlin efetivamente calou o que restava de imprensa independente no país.>
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