Publicado em 22 de setembro de 2025 às 15:33
A cena se repete ano após ano: o presidente do Brasil sobe à tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas e dá início ao mais importante debate diplomático global. Mas, afinal, por que cabe sempre ao Brasil o papel de iniciar o evento?>
A resposta está menos em regras escritas e mais em tradição diplomática. >
Segundo o livro O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2011, publicado pela Fundação Alexandre de Gusmão no aniversário de 50 anos da ONU, a prática teria começado em 1949, em meio ao clima de confronto da Guerra Fria, justamente para evitar dar primazia aos Estados Unidos ou à União Soviética. >
Desde então, tornou-se praxe: antes de abrir a lista de oradores, o secretário-geral envia uma nota à missão brasileira perguntando se o país deseja manter a tradição. >
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A resposta invariavelmente positiva mantém viva uma prática que "honra e distingue o Brasil", nas palavras da publicação.>
Ainda conforme o livro, essa circunstância consolidou na diplomacia brasileira a percepção de que o discurso de abertura possui peso estratégico. >
Segundo a publicação, o contrário da maioria das delegações, que costumam centrar-se em questões tópicas, o Brasil passou a usar esse espaço para fazer análises mais amplas da conjuntura internacional, projetando sua visão de mundo e defendendo temas estruturais, como o combate à fome, o desenvolvimento e a reforma de instituições multilaterais.>
Mas o professor de relações internacionais Matias Spektor avalia que, neste ano, Lula deve direcionar suas palavras ao público doméstico.>
"Eu antevejo que o Lula fará um discurso centrado na soberania, na importância do livre comércio, das instituições internacionais, ou seja, toda agenda que é uma agenda multilateralista, típica de país do sul global, com um tom que é crítico daquilo que o Trump vem fazendo", diz ele, que leciona na FGV (Fundação Getulio Vargas).>
Segundo Lucas Leite, professor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), essa tradição também tem raízes formais: "O Brasil foi muito importante na constituição da Carta da ONU e nas discussões para a criação da organização. O diplomata Oswaldo Aranha teve papel essencial na primeira Assembleia Geral, inclusive conduzindo o processo que levou à criação do Estado de Israel. Além disso, a diplomacia brasileira sempre foi respeitada como capaz de mediar conflitos e criar consensos, o que ajuda a explicar a continuidade dessa tradição".>
O gesto também dialogava com o papel que o país buscava exercer no pós-guerra: uma voz ativa no multilateralismo, mesmo sem figurar entre as grandes potências vencedoras do conflito. >
"Existe um argumento de que isso funcionou como uma espécie de prêmio de consolação, já que o Brasil não entrou como membro permanente do Conselho de Segurança, principalmente por resistência da União Soviética e de países europeus. Mas, mais do que isso, mostra a confiança que os países depositavam na diplomacia brasileira", complementa Leite.>
Desde 1955, o Brasil passou a abrir de maneira constante o Debate Geral, seguido pelo país anfitrião, os Estados Unidos. O arranjo deu estabilidade ao protocolo: depois desses dois, a ordem dos discursos é definida por critérios como o nível da autoridade presente, equilíbrio geográfico e ordem de inscrição.>
A tradição atravessou décadas, com raríssimas exceções motivadas por atrasos ou ajustes de agenda. Em 1983 e 1984, por exemplo, os EUA falaram antes do Brasil; em 2016, o segundo lugar coube ao Chade, porque o presidente americano não chegou a tempo.>
Mais do que uma curiosidade protocolar, a abertura dos discursos na ONU dá ao Brasil uma visibilidade singular. É uma vitrine para projetar sua política externa, expor prioridades nacionais e marcar posição em temas globais diante de chefes de Estado, diplomatas e da imprensa internacional. "Essa tradição pode ser entendida como simbólica, sim, mas também como um elemento concreto de poder do Brasil", observa Leite.>
O professor aponta que o país sempre defendeu a solução pacífica de controvérsias, o papel das instituições e o multilateralismo. "Nesse sentido, o simbolismo se traduz em prática: ser o primeiro a falar garante que o Brasil seja ouvido.">
"Brinco às vezes dizendo que muitos não estão ali para ouvir o representante brasileiro, mas sim o americano, que fala logo depois. Mas como já estão sentados, o Brasil acaba tendo mais repercussão do que outros países, que falam em dias seguintes, em momentos de menor atenção", complementa Paulo Velasco.>
É, portanto, segundo os especialistas, uma tradição que beneficia o país coloca o Brasil sob os holofotes. "Podemos dar recados, às vezes com maior contundência, às vezes menos, mas sempre em um espaço privilegiado", diz Velasco.>
Ao longo das décadas, a diplomacia brasileira oscilou entre diferentes linhas: de uma lógica americanista, alinhada aos Estados Unidos, até uma postura mais globalista, promovendo autonomia e desenvolvimento dos países do Sul Global. >
Segundo Leite, "essa 'pendulação' é visível nos discursos do Brasil na Assembleia Geral. Mesmo governos não alinhados à esquerda, como Temer, Fernando Henrique ou Sarney, repetiam linhas mestras: desenvolvimento, combate à pobreza, meio ambiente e democracia. Já a exceção foi o governo Bolsonaro, que adotou discurso populista e subserviente aos EUA, negando o multilateralismo".>
Historicamente, defende Leite, os discursos brasileiros ajudam a definir o tom do debate, chamando atenção para fome, pobreza, reforma de instituições globais e missões de paz. "Simbolicamente e na prática, o Brasil representa uma ponte entre mundos: Ocidente e Oriente, Norte e Sul, autonomia e desenvolvimento".>
O Brasil já abriu a Assembleia Geral da ONU em momentos de pressão internacional, mas nunca enfrentou uma situação de confronto direto tão evidente como agora, com os Estados Unidos.>
"Na época do Bolsonaro, por exemplo, houve atritos sérios com a França de Emmanuel Macron em torno das queimadas na Amazônia. Mas, evidentemente, não se compara com a tensão que temos hoje com os Estados Unidos", observa Paulo Velasco, professor de política internacional da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).>
A escalada começou ainda em julho: primeiro, Donald Trump classificou as acusações contra Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal como uma "caça às bruxas". Poucos dias depois, anunciou a sobretaxa de 50% sobre importações brasileiras. Lula, por sua vez, tem respondido com a defesa da soberania nacional.>
Além disso, os EUA também anunciaram sanções ao ministro do STF Alexandre de Moraes e sua mulher no âmbito da Lei Global Magnitsky.>
Para Velasco, o presidente deve aproveitar o púlpito em Nova York para reiterar "como tem feito" a defesa da democracia e da autodeterminação dos povos. "Deve dizer algo no sentido de que é inadmissível, em pleno século XXI, vermos ingerência externa sobre a soberania e o judiciário de países independentes. Seria um recado bastante indireto, mas direto ao mesmo tempo, a Donald Trump.">
No restante do discurso, o especialista acredita que Lula deve manter a linha de temas tradicionais de sua trajetória internacional. "Ao longo de sua vida política, Lula tem repetido os mesmos pontos na ONU: combate à fome e à pobreza, defesa do desenvolvimento sustentável, crítica aos gastos excessivos com armas, e a busca por uma ordem internacional mais justa e menos assimétrica. Foi assim nos anos 2000, foi em 2023, e deve ser agora também.">
Ainda que classifique o tom como "previsível", Velasco reforça que a mensagem é importante. Ele aponta, por exemplo, a necessidade de insistir no financiamento climático — pauta central para a COP30 — e de associar esse debate aos gastos militares em alta. "Se o mundo destina 5% do PIB em defesa, como alguns países da OTAN querem, sobra menos para combater a fome, enfrentar o aquecimento global e acelerar a transição energética.">
Velasco também espera menções às guerras em curso, com destaque para Gaza. "Ele certamente vai voltar ao tema, porque é uma questão premente para o Brasil, pelas violações de direitos humanos. Não acredito que use novamente o termo 'genocídio', mas não deixará de citar Gaza.">
Outro eixo deve ser a crítica ao protecionismo de Trump, contrastado com a defesa brasileira de princípios liberais. "É virar o jogo: mostrar que os Estados Unidos, que fundaram esse sistema no pós-Segunda Guerra, hoje são os que mais o ameaçam, ao questionar instituições multilaterais, a ONU, o livre comércio e as próprias regras que criaram.">
Nesse cenário, conclui o professor, o Brasil chega a Nova York em posição firme. "Não vejo o país com o 'rabo entre as pernas'. Mesmo que alguns ministros não viajem, a delegação será relevante e o Brasil estará confortável para dar seu recado — como tantas vezes fez na Assembleia Geral da ONU.">
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