Publicado em 30 de junho de 2025 às 13:38
"Às vezes tenho 53 anos e às vezes tenho 65.">
O médico Pierdante (Pier) Piccioni é um viajante involuntário no tempo.>
Ele acordou no futuro, o mundo havia mudado. Seus entes queridos estavam diferentes, seu próprio rosto estava irreconhecível. Além disso, ele descobriu que tinha um lado sombrio.>
A história dele terminou em 25 de outubro de 2001 e recomeçou em 31 de maio de 2013 em um leito de hospital no norte da Itália.>
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Pier era o chefe do departamento de emergência do hospital, mas naquele dia acordou como paciente, poucas horas depois de um grave acidente de carro.>
"Fiquei em coma por cerca de 6 horas e, quando acordei, meus colegas me perguntaram: 'Qual é o seu nome?' Tentei responder. Não conseguia falar muito bem.">
"E quando perguntaram: 'Que dia é hoje', pensei por alguns segundos e falei: '25 de outubro de 2001', e vi a incredulidade nos olhos deles.">
"Eles me perguntaram: 'Mas que dia exatamente da semana?>
"Respondi: 'Quinta-feira'.">
Os médicos verificaram e confirmaram que o dia 25 de outubro de 2001 havia caído, de fato, em uma quinta-feira.>
"Para eles, era incrível que eu me lembrasse exatamente do dia da semana de 12 anos atrás. Para eles, não para mim.">
Para Pier, esta quinta-feira de 12 anos atrás, era agora.>
Os médicos ficaram intrigados, mas não disseram nada a ele na ocasião.>
Só perguntaram se ele queria ver a esposa.>
"A pessoa que entrou era alguém parecida com a minha mulher, mas com muitas rugas, um cabelo diferente, de óculos... totalmente diferente.">
"Meu primeiro pensamento foi: 'O que aconteceu?' E o segundo foi: 'Cadê a câmera? Porque isso é ficção. Não é a vida real. É uma grande pegadinha.'">
"Depois, meus filhos — que na minha cabeça eram crianças de 8 e 11 anos — entraram e eram dois adultos, de 20 e 23 anos, totalmente diferentes!">
Pier achou que seus filhos eram atores, dois impostores. Ele não conseguia entender nada.>
"Um dos médicos era um velho amigo, mas eu me lembrava dele com cabelo, e ele não tinha mais cabelo.">
"Acho graça agora, mas na época foi terrível porque eu não entendia o que estava acontecendo, por que o mundo havia mudado tanto.">
"A realidade é que quem havia mudado era eu: perdi 12 anos da minha vida.">
Pier só percebeu que não era uma piada de mau gosto no dia seguinte, quando viu sua foto na primeira página do jornal local sobre o grave acidente envolvendo o chefe do departamento de emergência do hospital.>
"A data do jornal era 1º de junho de 2013.">
"Pensei: 'Isso não é uma pegadinha, é uma lesão cerebral, e essas são as consequências'.">
Ele logo percebeu que não eram apenas as pessoas que haviam mudado.>
"Me mostraram todos os avanços tecnológicos daqueles 12 anos: internet, WhatsApp, e-mail...>
"Fui dormir com o fax, e acordei com o e-mail.">
"O telefone que eu lembrava me permitia fazer ligações e enviar mensagens de texto, mas todas as redes sociais, como Instagram e Messenger, e o smartphone, surgiram durante meu buraco negro.">
O mundo estava completamente transformado. E naquele novo mundo havia uma ausência que causaria um sofrimento profundo.>
A mãe dele havia morrido durante os anos que ele não se lembrava.>
"Minha jovem mãe!">
"A primeira coisa que quis fazer quando saí do hospital foi ir ao cemitério, e só quando vi a foto dela no cemitério percebi que era verdade, e foi terrível.">
"A pior experiência é não conseguir lembrar o que sua mãe te disse antes de morrer.">
A situação com a qual Pier teve que lidar é difícil de imaginar.>
Aquele buraco negro, como ele chama, havia engolido 12 anos de memórias com a esposa, Maria Assunta Zanetti, os filhos, Filippo e Tommaso, amigos e colegas.>
Ele não se lembrava de como havia se tornado chefe do departamento de emergência do hospital.>
Não se lembrava sequer de si mesmo.>
"No começo, eu fiquei muito, muito bravo com Deus, com o mundo e comigo mesmo — ou melhor, com a pessoa que eu via no espelho, porque não era exatamente eu, mas outra pessoa com cabelos grisalhos e rugas que eu odiava.">
Além de perder sua aparência jovem aparentemente da noite para o dia, ele havia perdido o emprego. Como ele poderia trabalhar como médico quando algo tão dramático havia acontecido com ele?, os chefes dele disseram.>
"Meses depois, com as ressonâncias magnéticas, vimos as consequências do acidente: havia buracos no meu cérebro.">
"Os lugares em que eu tinha esses buracos provavelmente são onde armazenamos a memória de longo prazo, então eles continuaram a me estudar porque sou um paciente muito, muito interessante para neurocientistas.">
Pier se submeteu a todos os exames e procedimentos para tentar recuperar suas memórias. Ele tentou medicamentos e terapia, até mesmo tratamento de choque, mas nada funcionou.>
Sem um passado, ele descobriu que temia o futuro.>
"Eu era como um estrangeiro em um mundo que não entendia. Me sentia sozinho. Ninguém me entendia. Ninguém conseguia me entender.">
"E me senti sozinho durante muito tempo porque minha mãe havia morrido, e meus filhos, aquelas crianças, morreram, e foram substituídos por dois adultos.">
"Por que continuar vivendo? Pensei em cometer suicídio.">
Felizmente, embora se sentisse sozinho, ele não estava.>
A esposa esteve ao lado dele o tempo todo tentando ajudá-lo, apesar das dificuldades.>
"No começo foi muito difícil. Ela tentava me explicar muitas coisas que aconteceram, mas aquelas eram as memórias dela, não minhas.">
Eles também discutiam muito sobre questões práticas, já que naqueles anos que haviam sido apagados das suas memórias, eles haviam mudado de casa.>
"O que era um lar para ela, era algo novo para mim, e eu não sabia exatamente onde as coisas ficavam. Isso era muito problemático. Discutíamos muito.">
Mas será que ele se lembrava de que a amava, ou havia se esquecido desse sentimento também?>
Pier confessa que na primeira vez que a esposa o visitou no hospital, quando ele ficou chocado ao ver o passar dos anos no rosto dela, algo aconteceu quando ela saiu.>
"Ela se virou, eu a vi de costas, e pensei: Uau, que linda!">
"Eu me apaixonei, mas para mim, ela não era minha esposa.">
"Acho que sou o único homem que pode dizer que traiu a esposa com a própria esposa, porque ela era outra pessoa, e eu me apaixonei de novo... me apaixonei pela bunda da minha esposa de novo!">
Voltar a estabelecer um vínculo com os filhos foi mais complicado.>
"Meus filhos começaram a me amar. Era mais fácil para eles porque tinham todas as lembranças. O problema é que, sem memória, você não sabe realmente por onde começar.">
Ele havia deixado de ser pai de crianças pequenas para se tornar pai de adultos.>
"Foi um problema enorme. Se você não conviveu com eles na adolescência, é muito difícil ser pai ou mãe de um adulto.">
"Um exemplo foi quando vi meus filhos com as namoradas.">
"Na minha cabeça, eu ainda estava pensando em que histórias eu contaria para eles na hora de dormir.">
"Mas a realidade é que havia a possibilidade dos meus filhos engravidarem as namoradas.">
Ele havia passado dos contos de fadas para os preservativos num piscar de olhos.>
Uma das estratégias foi "reviver momentos por meio de paixões compartilhadas, como o futebol".>
"Vimos, por exemplo, a partida em que a Itália se consagrou campeã mundial em 2006.">
"Eu havia me esquecido disso, então vi pela primeira vez, mas o importante é que havíamos feito algo juntos e, dessa maneira, criamos uma nova memória.">
E com ajuda psicológica, ele aprendeu a administrar sua realidade.>
"Levei três anos da minha vida depois do acidente para entender como transformar a raiva em oportunidade.">
"Não foi fácil, mas me esforcei para voltar a estudar e ouvir minha família e amigos.">
E enquanto ouvia, ele aprendeu algo que o surpreendeu.>
Uma pergunta urgente que Pier tinha para sua família, amigos e colegas era que tipo de homem ele era.>
"Era um homem bom ou ruim?">
"Meus colegas me disseram que quando me tornei chefe do departamento de emergência, e tinha cerca de 230 pessoas sob meu comando, meu apelido era príncipe bastardo.">
O adjetivo "bastardo" foi muito revelador; e "príncipe" era porque "ele era cavalheiro ao insultar, e elegante ao repreender".>
"Quando descobri isso, me perguntei por quê, porque na minha cabeça eu não era um bastardo, mas tampouco era o chefe.">
Pier havia sido promovido em algum momento nos últimos 12 anos, e havia se tornado uma pessoa desagradável.>
"Foi muito difícil de acreditar, porque eu nunca tinha sido uma pessoa ruim antes.">
"Me disseram que eu era muito, muito obscuro. Que eu era como um diamante: muito forte, muito correto, mas duro demais com as outras pessoas.">
O que Pier fez foi procurar por si mesmo em todos os e-mails que ele havia escrito nos anos de que ele não conseguia se lembrar.>
"Li todos os e-mails, mais de 76 mil, para tentar entender quem eu era.">
"Em alguns, encontrei a confirmação de que era um homem e chefe ruim, uma pessoa dura, e fiquei triste.">
A esposa também contou que, quando ele assumiu o cargo de chefia, se tornou um workaholic.>
Dois anos depois, recorda Pier, um colega disse a ele: "Se soubéssemos que uma pancada na cabeça faria de você uma pessoa melhor, teríamos dado essa pancada em você antes".>
Mas como ele se tornou uma pessoa mais agradável?>
Doze anos após o acidente, Pier não perdeu a esperança de recuperar suas memórias perdidas, mas diz: "Aprendi uma coisa importante: Se você quer viver, não pode ficar pensando no passado — mas, sim, no futuro".>
Ele conta que teve que "começar a reconstruir minha vida, não com minhas lembranças, mas com as da minha esposa, dos meus amigos, dos meus filhos".>
"O que eles não conseguiram me devolver foram as emoções associadas a essas memórias, que são importantes.">
Além de reconstruir sua vida, ele decidiu reparar os danos causados pela pessoa que havia se tornado.>
Com a esposa, eles começaram a criar novas memórias, e uma das mais significativas, segundo ele, "foi quando perguntei se eu ainda sabia beijar. E ela me beijou".>
"Eu não tinha certeza se ela queria ficar comigo. Felizmente, ela quis.">
"Ela ainda me ama, e eu também. É muito lindo. E eu tenho muita sorte porque, desde que me recuperei, conheci muitas pessoas com o meu problema, e a maioria dos casais se separa, porque é muito difícil recomeçar.">
"Estamos felizes. Acho que minha esposa prefere o novo Pier ao antigo.">
"Pela minha experiência, o mundo prefere o novo Pier.">
Os amigos dele, por sua vez, também começaram a se adaptar à realidade.>
"No início, quando eu parecia mais estúpido do que o normal, era muito difícil para eles entenderem. Quando perceberam que eu tinha um grande problema, começaram a ser mais empáticos, gentis e pacientes.">
Eles não perderam, no entanto, a oportunidade de pregar peças nele ou de surpreendê-lo.>
"Certa vez, me mostraram a foto de um homem negro alto e, quando me disseram que ele era o presidente dos EUA, me pareceu impossível.">
Era, claro, Barack Obama. Pier não se lembrava da eleição dele, e ficou feliz.>
"Achei que o mundo novo era melhor que o antigo.">
"Tenho orgulho de viver em um mundo diferente, um mundo onde, por exemplo, as mulheres na minha profissão estão alcançando níveis muito mais altos do que antes, e isso é muito importante.">
E, embora ele tenha levado dois anos e meio, voltou a ser médico, apesar de ter sofrido uma lesão cerebral.>
"Eu tive que passar por mais de 63 testes técnicos, psicológicos e ambientais para provar que estava apto a voltar a ser médico.">
"E estudar novamente aqueles 12 anos de medicina.">
"Mas o problema não era a parte técnica. Quando recebi autorização para voltar a trabalhar, o problema era o relacionamento com meus colegas e, especialmente, com os pacientes, porque tive os mesmos pacientes da primeira etapa da minha vida profissional.">
"Todo mundo se perguntava: o príncipe bastardo voltou?">
"Mas a maioria deles, depois da minha primeira visita, me disse que eu realmente havia mudado.">
"Por ter sido paciente, eu havia me transformado em uma pessoa mais gentil e um médico melhor".>
Profissionalmente, Pier mudou de foco: o ex-chefe do departamento de emergência começou a trabalhar com pacientes idosos, muitos dos quais têm demência e perda de memória.>
"Todo mundo diz: 'Você está mais empático, você me ouve. Antes você falava, agora você fica quieto'.">
"E quando você ouve pacientemente, você faz metade do seu trabalho, porque os pacientes te contam tudo.">
Ouvir muito e falar pouco foi uma das coisas que ele aprendeu.>
Outro elemento essencial da sua transformação, segundo ele, foi "escrever um diário". >
"Escrevia o que me parecia importante ou coisas estúpidas do meu dia, da minha vida", explica.>
Esse diário sobre sua jornada entre suas duas "existências" foi a base do seu livro de memórias, publicado em italiano com o título Men Dodici ("Menos doze", em tradução livre). Esta obra, por sua vez, inspirou a série de sucesso italiana DOC - Uma Nova Vida.>
E neste ano, a Fox também lançou uma série baseada na história de Pier, chamada Doc. Nesta versão, quem sofre um acidente que muda sua vida é uma médica.>
"Acho que agora, embora tenha muitos problemas com o mundo, é claro, sou mais normal, se houver normalidade.">
Uma normalidade que inclui, no entanto, anomalias.>
"Quando acordo, me sinto com 53 anos; durante o dia, descubro que tenho 65 anos.">
Envelhecer 12 anos todos os dias é "tão difícil de lidar que, às vezes, nesses momentos, eu choro".>
"Tenho que dizer a mim mesmo: Você deve ser feliz. No passado, eu fui feliz, no presente e, no futuro, devo ser feliz.">
E ajuda o fato de que "meu novo mundo é melhor do que o outro"... exceto por uma coisa, uma mudança que ele realmente não gostou.>
"O preço do café espresso macchiato".>
*Se você quiser ouvir o episódio "The man who woke up in the future" da série "Lives Less Ordinary", da BBC World Service, em inglês, clique aqui.>
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