Publicado em 30 de junho de 2024 às 09:20
“Estamos esperando encontrar mais alguém para fazer o velório do Dorly.”>
Assim Luana Brino, de 23 anos, resume a angústia de quem aguarda há dois meses o momento de enterrar mais da metade dos parentes, que foram vítimas da maior catástrofe ambiental da história do Rio Grande do Sul.>
Em uma única tarde, Luana e o marido, Eduardo Brino, de 24 anos, perderam seis familiares em razão da chuva torrencial que caía desde a véspera.>
Três deles ainda estão desaparecidos: Elírio Brino e sua mulher, Erica, ambos de 78 anos; e Janice, de 49.>
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Eles são os três moradores do município de Roca Sales, no Vale do Taquari, a 142 km de Porto Alegre, que não foram encontrados após temporais e enchentes atingirem a região.>
Os três não compartilhavam apenas o sobrenome, mas também o endereço em uma pequena propriedade na localidade de Linha Marechal Hermes, a cerca de 18 quilômetros do centro da cidade, onde a família criava bois e porcos.>
Elirio e Erica viviam com o filho, Dorly, de 58 anos, e com a mulher de Dorly, Janice, de 49. Também viviam ali as netas do casal idoso e filhas de Dorly e Janice: Maria Eduarda, 20 anos, e Gabriela, 9 anos. >
Dorly e Janice são pais também de Eduardo, que vivia com Luana no município vizinho de Muçum.>
Elirio, Erica e Dorly foram vistos pela última vez por volta das 15h30 de 30 de abril. >
Nas semanas seguintes à tragédia, equipes do Corpo de Bombeiros encontraram os corpos de Dorly, Maria Eduarda e Gabriela.>
Maria Eduarda e Gabriela foram enterradas, mas o corpo de Dorly permanece no Instituto Médico Legal (IML) na esperança de que seja possível velá-lo em companhia dos pais e da mulher.>
As buscas pelos desaparecidos prosseguiam até o fechamento desta reportagem.>
A dor da perda de tantos parentes é diariamente agravada pela tentativa frustrada de localizar os corpos.>
“Agora sou a única pessoa ao lado dele [do marido]”, desabafa Luana à BBC News Brasil.>
Para Luana e Eduardo, a espera é entremeada com lembranças amargas dos últimos contatos com as vítimas.>
Horas antes de desaparecer, Janice fez várias ligações por celular para Eduardo para alertá-lo sobre o mau tempo. >
“Se cuida”, dizia.>
“Ela [Janice] ficava ligando de tempo em tempo para saber como nós estávamos”, conta Luana.>
“Moramos em ponto alto da cidade, a enchente não chega até aqui, mas dizíamos a eles que a chuva estava muito forte.”>
A família Brino foi soterrada por uma imensa massa de rochas e lama que se desprendeu de um morro na propriedade, cobrindo tudo que existia nas imediações.>
A elevação era considerada tão segura que Eduardo e Luana pretendiam construir uma casa no topo e se mudar para lá para ficar junto com os familiares.>
Em 29 de abril, uma segunda-feira, quando soou o primeiro alerta vermelho, Eduardo esteve no local para deixar uma carga de blocos de concreto destinados à obra.>
O deslizamento, que produziu um estrondo, ocorreu em segundos, de acordo com vizinhos. Eles tentaram, junto com Dorly e Janice, desentupir uma vala nos instantes anteriores à tragédia.>
A família não sabe com exatidão o que aconteceu a partir do momento em que um dos vizinhos, que operava um trator, aconselhou Dorly e Janice a suspender o trabalho, porque a água já havia chegado à metade da altura da máquina.>
“Vamos ter de abandonar”, teria dito o amigo do casal.>
Após se despedirem, Dorly e Janice começaram a descer o caminho de terra que leva à casa, onde se encontravam Elirio, Erica, Maria Eduarda e Gabriela.>
“Provavelmente, eles continuaram tentando abrir a vala enquanto desciam”, imagina Luana.>
Elírio, Erica e Janice estão entre as 34 pessoas que continuam desaparecidas após as enchentes.>
O número é muito menor do que no auge da crise, no dia 10 de maio, quando as autoridades buscavam 146 pessoas em todo o Estado.>
No Rio Grande do Sul, 179 pessoas perderam a vida por conta da catástrofe, segundo a Defesa Civil do Estado. >
Como costuma ocorrer em catástrofes dessa proporção, o cômputo de desaparecidos decresceu à medida que a chuva amainou e os corpos das vítimas foram localizados.>
Assessora da Defesa Civil, a tenente Sabrina Ribas diz que, a partir de agora, o órgão só divulgará boletins quando houver alteração nos números.>
Antes, chegaram a ser divulgados três boletins diários com contagem de vítimas.>
O maior número de desaparecidos está em Cruzeiro do Sul, a 124 km de Porto Alegre, onde autoridades ainda buscam seis moradores — outros 12 habitantes já foram confirmados entre os mortos no Estado.>
Um bairro inteiro, Passo de Estrela, na divisa com o município de Lajeado, foi varrido do mapa pela força das águas do rio Taquari, que atingiu a marca histórica de mais de 33 metros.>
Com 23 desaparecidos, o Vale do Taquari, onde estão localizados Roca Sales e Cruzeiro do Sul, responde por 67,6% dos que ainda estão desaparecidos em razão da catástrofe.>
Também ainda não foram encontrados moradores de Arroio do Meio (1), Encantado (2), Estrela (1), Lajeado (1), Marques de Souza (1), Poço das Antas (1), Relvado (1) e Teutônia (1). >
Porto Alegre, a capital, tem apenas um habitante na lista.>
O delegado Mario Souza, diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Secretaria de Segurança Pública do Estado, afirma que as buscas prosseguirão até que a ocorrência seja arquivada — seja por meio da localização com vida, se forem achados os corpos ou restos mortais das vítimas ou da decretação de morte presumida.>
A legislação brasileira prevê a presunção de morte, entre outras situações, quando é extremamente provável que alguém em situação de perigo extremo tenha morrido, mas seus restos não tenham sido localizados.>
Nesses casos, a morte é declarada por decisão judicial, a ser requerida depois de esgotadas as buscas pelo corpo. A sentença fixa, no caso de morte presumida, a data provável do óbito.>
Desde o início da tragédia, a principal preocupação do Departamento de Homicídios, segundo Souza, foi adaptar o trabalho das equipes para fazer frente ao grande número de registros de pessoas com paradeiro ignorado.>
“No dia 6 de maio, aumentamos a estrutura da busca por desaparecidos de um para quatro delegados à frente de quatro equipes”, afirma o diretor.>
A partir do momento em que um desaparecimento é informado à Polícia Civil, por meio de um boletim de ocorrência feito em delegacia especializada – que, desde maio, também pode ser feito por WhatsApp ou ligação telefônica para o número 0800-642121 –, a investigação passa por distintas etapas.>
A primeira passa pelo contato dos policiais com familiares e amigos. Em um segundo momento, são realizadas buscas de rotina em sistemas de câmeras, bancos e bases de dados das polícias. O estágio final são as diligências nas ruas.>
“É um trabalho sensível, complexo, que precisa ser feito com muito cuidado e abrangência. Às vezes, um desaparecimento pode envolver um crime, um problema de saúde, uma situação em que a pessoa não quer ser encontrada ou um suicídio”, diz Souza.>
O destino dos Brino exemplifica de forma dramática a participação de Roca Sales na crise gaúcha.>
Afetado por enchentes por duas vezes em menos de um ano, o município pagou um preço aproximado em vidas humanas em ambas as ocasiões.>
Em setembro de 2023, Roca Sales registrou 16 mortos e nenhum desaparecido. Oito meses depois, o cômputo da Defesa Civil do Estado indica que 12 pessoas pereceram.>
Outras três, os Brino, ainda não foram localizadas. Além da distância no tempo, porém, há uma diferença entre os dois episódios: enquanto no primeiro a morte veio pela água, no último impôs-se pela terra.>
“Em setembro, todas as 16 vítimas fatais em Roca Sales morreram por afogamento. Em maio, todos foram soterrados”, diz o prefeito Amilton Fontana (MDB).>
O Rio Taquari, que banha a região, surpreendeu os moradores em 2023, fazendo com que este ano os alertas da Defesa Civil em relação a cuidados e evacuações tenham sido mais rapidamente seguidos.>
“A enchente de maio foi a maior da história. Se as pessoas não tivessem saído, ia dar muita morte”, afirma.>
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