Publicado em 11 de junho de 2025 às 16:39
"Sou católico e também pratico um pouco de judaísmo", declarou certa vez o presidente da Argentina, Javier Milei — no país, cerca de 62% se declaram católicos.>
Não é acaso portanto que o político de direita e libertário esteja em Israel em sua segunda visita de Estado ao país em um ano e meio de governo — a primeira, em 2024, foi também sua primeira viagem oficial como presidente.>
Desta vez, Milei será homenageado com o prêmio Gênesis, conhecido como "prêmio Nobel judeu". Seu flerte com temas judaicos, principalmente os ligados à pauta ortodoxa e conservadora, data de antes da sua posse como presidente da Argentina.>
Na terça-feira (10/6), durante encontro com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahupresente oficial para o líder israelense um desenho feito a partir de uma foto icônica: o primeiro encontro do então jovem Netanyahu, recém-nomeado representante de Israel nas Nações Unidas, com o rabino Menahem Mendel Schneerson (1902-1994).>
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A admiração pública de Milei por esse famoso rabino, considerado milagroso por seus seguidores, é antiga. >
Em 2023, ele visitou duas vezes o túmulo de Schneerson (1902-1994), no cemitério de Montefiore, em Nova York. Antes das eleições que o fizeram presidente da Argentina, foi para pedir a bênção do rabino. Recém-eleito, em novembro, retornou ao local para agradecer pelo resultado do pleito.>
Schneerson é visto um dos rabinos mais influentes do século 20. Aconselhou diretamente diversos presidentes americanos e, por um grupo de seguidores, passou a ser aclamado como o verdadeiro messias. >
No aspecto religioso, ele teve a proeza de transformar um pequeno grupo da corrente chassídica, vertente judaica que nasceu no século 18 na Europa Oriental, em um dos movimentos mais fortes da espiritualidade judaica contemporânea: o Chabad-Lubavitch.>
"Chabad-Lubavitch é uma filosofia, um movimento e uma organização. Chabad também é um acrônimo de três palavras hebraicas, sabedoria, intuição e conhecimento, que representam faculdades intelectuais", explica à BBC News Brasil o rabino Yaacov Behrman, relações públicas da sede do Chabad-Lubavitch em Nova York.>
Behrman salienta que Chabad-Lubavitch é "uma filosofia que promove a autorreflexão e ajuda a refinar as ações e emoções por meio da compreensão e do discernimento".>
Diretor das escolas de ensino judaico Lubavitch Gani no Brasil, o rabino Moti Begun lembra à BBC News Brasil que a filosofia Chabad "valoriza a prática dos ensinamentos da Torá com profundidade intelectual" e busca transformar "conhecimento em ações". >
Ele diz ainda que os líderes do movimento "sempre se preocuparam com o bem-estar espiritual e material da comunidade judaica" e seus fundamentos partem do "amor incondicional ao próximo".>
"Chabad é uma corrente chassídica surgida em 1775 no então Império Russo, que teve como primeira liderança o rabino Shneur Zalman de Liadi", contextualiza à BBC News Brasil o historiador, hebraísta e rabino Theo Hotz, apresentador do podcast Torá com Fritas.>
"Entre 1813 e 1915 as lideranças seguintes se fixaram na cidade de Lubavitch, de onde vem o segundo nome pelo qual essa dinastia chassídica é conhecida, Chabad-Lubavitch.">
Lubavitch é o nome da cidade russa na região de Smolensk onde o movimento surgiu e foi sediado por mais de um século.>
Hotz acrescenta que "nenhuma das ramificações ortodoxas judaicas se define como 'corrente'". "Mas podemos dizer que, de certa forma, o chassidismo, em geral, é uma corrente religiosa, composta por diferentes dinastias", diz.>
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Messias é uma palavra que vem do hebraico e significa "o ungido". >
Na história das religiões judaico-cristãs, o termo é empregado para se referir a um salvador, a um libertador que viria para cumprir uma profecia. >
Para os cristãos, Jesus é considerado o messias que vinha sendo aguardado. Para os judeus, o messias seria um futuro rei descendente do mítico rei Davi, que governaria a nação judaica.>
Em março de 1992, o jornal Washington Post publicou uma reportagem sobre os seguidores de Schneerson, chamando-os de "dezenas de milhares" integrantes de uma "seita judaica que espera o messias para breve". De acordo com a reportagem, "alguns acreditam que ele pode vir do Brooklyn".>
Era uma referência ao próprio rabino. Nascido no império russo, em região onde hoje é a Ucrânia, Schneerson tornou-se o sétimo líder do grupo (rebe), sucedendo o seu sogro, que morreu em 1950.>
Rebe, assim como rabino, deriva da palavra hebraica rabi, que significa "mestre". Acabou sendo apropriada pelo movimento Chabad para se referir ao seu líder.>
"Segundo os seguidores do rebe, o messias não é outro senão o próprio Schneerson", pontuou a reportagem do jornal de Washington. >
"Acredito que o messias está chegando e que o rebe é o melhor candidato para ser o messias", declarou na época o rabino Joseph Aronov, então diretor-executivo do movimento em Israel. Em 1992, Aronov mandou instalar outdoors em Israel com frases como "prepare-se para a vinda do messias".>
O sociólogo e historiador israelense Menachem Friedman (1936-2020), professor na Universidade Bar Ilan, foi um profundo estudioso do movimento Chabad-Lubavitch. >
Ele definia Schneerson como um "gênio da propaganda" responsável por revitalizar o "judaísmo ultraortodoxo conseguindo fazê-lo coexistir com o mundo secular moderno".>
No início dos anos 1990, Friedman avaliava que o rebe havia ido longe demais, já que "a maioria dos seus seguidores agora o apresenta abertamente como representante de Deus".>
Hoje em dia, a imensa maioria dos seguidores do movimento não segue a tese messiânica — ao menos é o que diz o porta-voz da sede da vertente nos Estados Unidos. >
"A liderança principal do Chabad e o movimento como um todo rejeitam essa ideia", esclarece o rabino Behrman.>
"Embora um pequeno grupo marginal continue acreditando nela", ressalva o rabino.>
Em vida, o rebe jamais declarou explicitamente ser o messias.>
"Inúmeros chabadnikim [os seguidores de Chabad] acreditam que o Lubavitcher Rebe [Schneerson] seja o mashíach [o messias], que não morreu, mas sim, se ocultou deste mundo e de novo ressurgirá", comenta Hotz. >
"Outros vários seguidores não acreditam na messianidade do rebe. A maioria absoluta dos judeus do mundo todo não acredita na messianidade do rebe.">
O rabino Begun diz que o rebe Schneerson "cumpria a grande maioria" dos critérios, "de acordo com a lei judaica, conforme descrita nos livros haláchicos de Maimônides", para ser reconhecido como messias, "incluindo o fato de ser descendente direto do rei David".>
"Por isso, é amplamente considerado um candidato legítimo, especialmente por causa da profunda transformação positiva que provocou no mundo contemporâneo", ressalta ele.>
"Cabe a nós, seus discípulos e seguidores, ou melhor, líderes, como ele nos ensinou a ser, dar continuidade à missão de refinar e elevar este mundo, preparando-o para a vinda eminente do verdadeiro messias", diz Begun, completando que pode ser ele o próprio rebe ou "outro enviado" por Deus. >
"O rebe, assim como o judaísmo, nunca enfatizou tentar descobrir e identificar o messias, e sim, fazer a nossa parte, por meio das práticas e boas ações para apressar a sua vinda.">
De qualquer forma, é um posto vago. Desde que Schneerson morreu, ninguém o sucedeu como rebe. >
"Ao longo da história judaica, houve momentos em que um grande líder faleceu, deixando um vazio que ninguém de estatura equivalente conseguiu preencher", diz Behrman.>
"O sétimo rebe não deixou descendentes, nem indicou uma sucessão, não há necessariamente uma razão específica ou deliberada para isso, mas sim circunstancial", argumenta Hotz. >
"O movimento funciona já há quase 31 anos sem um rebe e não me parece haver qualquer expectativa entre os seguidores de que alguém ocupe o espaço do sétimo rebe de Lubavitch.">
"Um rebe não é apenas um líder político ou institucional, mas alguém dotado de qualidades excepcionais e de uma alma abrangente, muitas vezes, considerada insubstituível", esclarece Begun. >
"No entanto, o rebe não buscava formar seguidores passivos. Ele acreditava profundamente no potencial único de cada indivíduo para liderar à sua maneira, em seu próprio ambiente, e contribuir ativamente para transformar o mundo em um lugar melhor.">
"Por isso, o legado do rebe permanece vivo em cada pessoa que se inspira em seus ensinamentos e os traduz em ação", acredita o rabino.>
Schneerson nunca pisou em Israel. Em 1928, quando se casou, ele se mudou para Berlim, na Alemanha. Com a perseguição dos nazistas aos judeus, ele se mudou primeiro para Paris, na França, em 1933. >
Em 1941, com a França também ocupada pelas tropas de Adolf Hitler (1889-1945), fugiu para os Estados Unidos, baseando-se em Nova York.>
Logo que chegou ao solo americano, acabou assumindo a gestão de organizações do Chabad, encarregado por seu sogro.>
Sua relevância social e política cresceu, atingindo o ápice depois que ele herdou do sogro o título de rebe. Na função, ele passou a receber visitantes para reuniões privadas, os yechidus, que ocorriam nas noites de quinta-feira e de domingo, das 20h até alta madrugada.>
Era comum que entre os que o procurassem estivessem políticos e lideranças de relevo mundial. >
Entres os nomes que frequentavam essas reuniões estão os presidentes americanos John F. Kennedy (1917-1963), Jimmy Carter (1924-2024) e Ronald Reagan (1911-2004), o procurador-geral dos Estados Unidos Robert Kennedy (1925-1968), o parlamentar americano Franklin D. Roosevelt Jr. (1914-1988), entre outros.>
Encabeçou diversas campanhas filantrópicas e era conhecido por uma ética própria de trabalho: diz-se que se dedicava à função 18 horas por dia e que nunca tirou férias desde que se tornou rebe.>
O Chabad-Lubavitch é uma vertente importantíssima para o judaísmo ortodoxo. De acordo com o rabino Behrman, porta-voz da sede americana, cerca de 1 milhão de crianças judias estão de alguma forma conectadas aos projetos mantidos pelo segmento, entre escolas, instituições, acampamentos de verão e programas extracurriculares em todo o planeta.>
"Estima-se em torno de 500 mil o número de chassídicos no mundo inteiro, sendo aproximadamente 90 mil os seguidores da dinastia de Chabad-Lubavitch", conta Hotz.>
O historiador explica que dentre as "inúmeras correntes religiosas judaicas", muitas delas acabaram se subdividindo "em vertentes e subvertentes". >
"A grosso modo, podemos dizer que o judaísmo apresenta as seguintes correntes, cada uma com diversas ramificações e vertentes: ortodoxia judaica, judaísmo tradicional, judaísmo conservador-igualitário, judaísmo reformista, judaísmo reconstrucionista, judaísmo renovador", conta, lembrando que são as principais, "mas não todas.">
"Após a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, muitas dessas correntes se fecharam em si mesmas, adotando uma postura de isolamento tanto em relação ao mundo exterior quanto a outras vertentes do judaísmo", comenta o rabino Begun. >
"Chabad-Lubavitch, no entanto, sob a liderança do rebe, seguiu um caminho diferente. Acreditava ser essencial a busca e o resgate de cada judeu, independentemente de sua filiação ou nível de observância, com amor, respeito e orgulho por sua herança judaica, com o mesmo fervor com que Hitler tentou nos destruir.">
"A dinastia de Chabad está entre as mais conhecidas, embora não seja tão numerosa", conta o historiador Hotz. >
"Nesse sentido, é bem importante, sobretudo por ter como prática o envio de shluchím, os emissários, espécie de rabinos missionários para inúmeros lugares no mundo, mesmo onde quase não haja judeus, com o objetivo de difundir a mensagem de Chabad e receber judeus de outras partes do mundo que estejam em visita turística ou profissional nesses locais", prossegue.>
"Isso faz com que, mesmo não sendo tão numerosos, tenham uma presença forte e marcante onde se estabeleçam.">
Begun atribui essa preocupação à "filosofia inclusiva e visionária" do sétimo rebe.>
"O Chabad passou a enviar emissários para os quatro cantos do mundo, estabelecendo instituições em mais de cem países e em todos os Estados americanos", ressalta ele.>
"Por meio de centros comunitários, escolas, sinagogas, yeshivot [escolas de formação rabínica] e projetos de assistência social, tem difundido a beleza do judaísmo e fortalecido os laços da identidade judaica em todas as partes do mundo, tornando-se a mais importante e influente corrente judaica.">
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