Publicado em 30 de março de 2023 às 14:49
- Atualizado há 2 anos
Nas últimas semanas, o influenza H5N1, vírus causador da gripe aviária, voltou a figurar nas manchetes de todo o mundo. Das cidades litorâneas do Daguestão, na Rússia, à costa do Peru, passando por fazendas de visons na Espanha e granjas nos Estados Unidos, foram vários os episódios registrados de milhões de animais que morreram (ou foram sacrificados) após terem contato com esse agente infeccioso. (*Conteúdo originalmente publicado pela BBC Brasil em 30 de março de 2023)>
Embora o risco ainda seja considerado pequeno, agências de saúde e pesquisadores do mundo inteiro aumentaram o nível de alerta sobre esse tipo de influenza e o potencial que ele possui de causar a próxima pandemia.>
"Se o H5N1 ganhar a capacidade de ser transmitido de uma pessoa para outra, esse pode ser um dos problemas mais graves que a humanidade já enfrentou", diz o virologista Edison Luiz Durigon, professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).>
A boa notícia é que, ao contrário do que ocorreu na Covid-19, os governos e serviços de saúde já têm planos definidos sobre o que fazer caso um avanço do H5N1 se torne realidade — algumas vacinas, inclusive, já estão prontas ou em desenvolvimento agora.>
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Mas, afinal, o que faz esse vírus ser tão preocupante assim? E por que ele voltou a ser assunto recentemente?>
A Organização Mundial para Saúde Animal estima que, desde outubro de 2021, foram registrados mais de 42 milhões de casos de infecção por H5N1 em aves. >
Nesse período, cerca de 15 milhões de aves domésticas morreram em decorrência dessa gripe — e outras 193 milhões precisaram ser sacrificadas.>
Trata-se, portanto, do pior surto de gripe aviária já registrado desde que esse vírus foi identificado pela primeira vez.>
O H5N1 é conhecido desde 1996, quando foi detectado por cientistas na China e em Hong Kong. >
Mas ele ganhou destaque internacional a partir de 2005, ano em que a mortalidade de frangos criados em granjas na Ásia subiu drasticamente. À época, também foram registrados episódios de infecção em seres humanos — todos os afetados tiveram contato direto com aves doentes.>
Os surtos também estão se espalhando mundo afora: antes, eles se concentravam na Ásia e na Europa; mais recentemente, começaram a afetar as Américas — por ora, apenas Brasil e Paraguai não tiveram casos confirmados da infecção na América do Sul.>
O aumento da circulação está relacionado às aves migratórias, que vão de um continente para o outro de acordo com a estação do ano. Muitas delas viajam infectadas e, quando chegam a um novo lugar, têm contato com as espécies locais. >
A partir dessa proximidade, o vírus começa a circular numa nova região — e pode chegar às granjas, que concentram grandes quantidades de aves em armazéns fechados.>
A médica veterinária Helena Lage Ferreira, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, explica que o influenza H5N1 passou por uma "diversificação genética".>
"O subtipo que está causando o problema atual pertence ao clado 2.3.4.4b. Ele apresenta algumas mutações genéticas que tornaram o vírus mais transmissível entre as aves", aponta.>
O "clado" citado pela especialista é um termo que se aproxima do significado de grupos ou variantes, que ficaram muito conhecidas por causa do coronavírus e suas linhagens, como a ômicron, a gama e a delta.>
"O H5N1 é diferente de todos os outros. Nas aves, causa uma infecção grave, com sintomas respiratórios, como pneumonia, e até sinais neurológicos", descreve Ferreira, que também é professora da USP.>
Além do altíssimo número de aves afetadas nos últimos dois anos, o que tem chamado a atenção dos cientistas mais recentemente é a quantidade de mamíferos que também estão se infectando com o H5N1.>
Até o momento, casos de gripe relacionados a esse tipo de influenza foram confirmados em ursos, raposas, gambás, guaxinins, visons, focas, golfinhos e leões marinhos.>
Na maioria desses casos, a infecção acontece pelo contato próximo das aves com esses mamíferos.>
Muitos deles compartilham o mesmo habitat — o contato próximo facilita a transmissão do vírus entre espécies dessas duas classes de animais. >
Ou seja: na maioria das vezes, o H5N1 é transmitido diretamente das aves para os mamíferos por meio de fluidos corporais (como gotículas de saliva ou fezes) ou pela predação, em que uma espécie caça e se alimenta da outra.>
Recentemente, porém, dois episódios sinalizaram que o H5N1 pode estar adquirindo aos poucos a capacidade de se transmitir de um mamífero para o outro.>
O primeiro deles aconteceu na Galícia, no noroeste da Espanha. Em outubro de 2022, os responsáveis por uma fazenda notificaram as autoridades sobre a transmissão desse influenza entre os visons (ou minks), um tipo de animal criado para a fabricação de casacos.>
Essa foi a primeira ocasião em que a transmissão do H5N1 entre mamíferos (sem a intermediação de aves) foi confirmada oficialmente. Nenhum ser humano que teve contato com os visons ficou doente.>
O segundo episódio ocorreu na costa do Peru, em que mais de 3,4 mil leões-marinhos morreram por causa da gripe aviária. >
Esses óbitos na costa peruana ainda estão sob investigação para definir se a cadeia de transmissão envolveu diretamente as aves — ou o H5N1 também começou a ser transmitido entre os leões-marinhos.>
Para a microbiologista Marilda Mendonça de Siqueira, chefe do Laboratório de Vírus Respiratórios, Exantemáticos, Enterovírus e Emergências Virais do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), todas essas observações são "preocupantes".>
"Para infectar, os vírus precisam se adaptar às condições do hospedeiro", ensina.>
"Além de conseguir se encaixar nos receptores das células das novas espécies, o influenza precisa se adequar às condições de temperatura e pH de cada organismo, que são diferentes em aves e mamíferos.">
Em outras palavras, esse patógeno passou — e está passando — por uma série de transformações em seu material genético que podem facilitar o "pulo", ou a transmissão entre outras espécies, além daquelas em que ele já era frequentemente observado.>
"E isso causa preocupação, pois as condições do organismo de seres humanos são bem mais próximas a de outros mamíferos do que das aves", complementa Siqueira.>
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 2003 e março de 2022 foram registrados 864 casos e 456 mortes causadas pelo H5N1 em seres humanos.>
Já o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos estima que, entre janeiro de 2022 e março de 2023, dez pessoas foram diagnosticadas com a gripe aviária. Duas delas morreram.>
Esses últimos casos aconteceram em Camboja, China, Espanha, Equador, Reino Unido, Estados Unidos e Vietnã.>
Embora os números sejam pequenos, eles permitem calcular uma mortalidade bem alta: no cômputo geral, 52% das pessoas que foram infectadas pelo H5N1 morreram.>
"Quando vemos esses casos mais recentes, ligados principalmente ao clado 2.3.4.4b, a mortalidade observada é menor, de 20%. Mesmo assim, é algo que preocupa", pondera Ferreira.>
Para comparar, a atual taxa de mortalidade do Sars-CoV-2, o coronavírus que causa a Covid-19, fica ao redor de 1%.>
"Os vírus influenza costumam se replicar nas vias aéreas superiores e nos pulmões. Já o H5N1 parece ir além e atinge outros órgãos vitais, como o cérebro, o coração, o fígado, o baço e os rins", detalha Durigon.>
"Os atestados de óbito para gripe comum costumam dizer que o indivíduo morreu de infecção pulmonar ou pneumonia. Já no H5N1, a causa de morte geralmente é descrita como 'falência múltipla de órgãos'", complementa o virologista.>
Que fique claro: os casos de gripe aviária em seres humanos são esporádicos e estão todos relacionados ao contato próximo com animais infectados em granjas ou na natureza. Até o momento, não foi registrado nenhuma cadeia de transmissão direta desse influenza de uma pessoa para outra.>
Para isso ocorrer, seria necessário que o H5N1 sofresse mutações — ou se recombinasse com outros tipos de influenza que afetam as pessoas ou as demais espécies (como aves e suínos).>
Mas será que isso pode acontecer um dia?>
"Eu diria que há uma incerteza, mas nunca estivemos tão próximos de um cenário desses. E uma pandemia de H5N1 seria uma tragédia", alerta Durigon.>
"O H5N1 é um candidato a causador de uma futura pandemia. A pergunta aqui não é 'se' isso vai acontecer, mas, sim, 'quando'", afirma Siqueira.>
O médico britânico Jeremy Farrar, cientista-chefe da OMS, parece concordar com a visão dos especialistas brasileiros. >
Numa entrevista recente, ele classificou o H5N1 como "uma grande preocupação" e sugeriu que mais atitudes devem ser tomadas para preparar o mundo para a próxima pandemia. >
"Se um surto de H5N1 em humanos começar na Europa, no Oriente Médio, nos Estados Unidos ou no México amanhã, não seríamos capazes de vacinar todo mundo ainda em 2023", estimou. >
Os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil ponderam que, ao contrário do que aconteceu com a Covid-19, as instituições internacionais e os governos estão mais preparados para lidar com eventual crise provocada pelo vírus influenza.>
"A OMS tem planos de contingência para uma pandemia de influenza desde os anos 1950", lembra Siqueira.>
Essa organização envolve redes de vigilância e análise laboratorial espalhados pelo mundo. O propósito aqui é detectar os vírus com rapidez, antes que ele se espalhe.>
Um exemplo desses sistemas de monitoramento vem do próprio Brasil: o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação mantém a Rede Previr, que avalia a presença de patógenos em várias reservas naturais do país.>
"A partir do ano passado, começamos a monitorar aves silvestres migratórias. Como o H5N1 chegou a outras partes da América do Sul, existe um risco muito grande de encontrá-lo também no Brasil", conta Durigon, que faz parte do projeto.>
Vale destacar que essa versão do influenza ainda não foi detectada no país até o momento.>
O Ministério da Agricultura e Pecuária também realiza análises constantes nas granjas. >
"E isso é estratégico, uma vez que nosso país é um dos maiores exportadores de frango no mundo. Se o H5N1 chega aqui e afeta os produtores locais, com a necessidade de abater os animais, isso representaria um grande problema à economia", complementa o virologista do ICB-USP.>
Além da vigilância constante, outra ação primordial nesse contexto é criar e testar formas de prevenção e tratamento da gripe aviária.>
Nessa seara, as notícias são positivas. "Os remédios antivirais que temos à disposição são eficazes contra o H5N1 em circulação", pontua Ferreira. >
As vacinas contra este influenza também já estão em desenvolvimento. No Brasil, o Instituto Butantan anunciou no início de março que já trabalha num imunizante contra esse patógeno.>
"A expectativa é finalizar os testes pré-clínicos ainda neste ano e avançar para o estudo clínico [que envolve voluntários humanos] em 2024", afirma a instituição em nota publicada no site.>
Siqueira estima que, diante dos planos de contingência elaborados nas últimas décadas, seria possível ter doses de vacina contra o H5N1 prontas para campanhas de larga escala em cinco ou seis meses.>
"Não sabemos se esse vírus vai causar uma pandemia em um, cinco ou 100 anos. Mas precisamos estar preparados para isso", diz a especialista.>
Do ponto de vista individual, existem algumas medidas básicas que já podem ser colocadas em prática para proteger a si mesmo — e diminuir o risco de uma pandemia futura.>
"O cuidado mais importante nesse momento é não tocar ou chegar perto de uma ave morta que você vir na praia, na mata ou em qualquer lugar", orienta Siqueira.>
Nesses casos, a recomendação é notificar as autoridades locais, que podem enviar funcionários com equipamentos de proteção para fazer a remoção e mandar o corpo para análise em laboratório.>
E, naturalmente, os protocolos básicos de fazer a higiene das mãos e ficar afastado das atividades se estiver com sintomas de infecção respiratória continuam a valer.>
"Isso é algo que foi reforçado na pandemia de covid-19 e que precisaremos manter pelo resto das nossas vidas", conclui a microbiologista da FioCruz.>
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c28jn1n40r2o>
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