Publicado em 2 de agosto de 2025 às 07:25
Centenas de pessoas ainda estão traumatizadas com os abusos sofridos nas mãos de um antigo movimento religioso que caiu em desgraça.>
Jon Ironmonger investigou o grupo conhecido como Exército de Jesus antes do seu fechamento, cinco anos atrás. Ele se encontrou com a diretora de uma nova série documental da BBC para contar a sua história.>
À primeira vista, o Exército de Jesus parecia ser uma entusiasmada igreja da região rural de Northamptonshire, na Inglaterra.>
Ela reunia 2 ou 3 mil membros, que usavam um chamativo uniforme militar, e contava com uma frota de ônibus com as cores do arco-íris.>
>
Mas a realidade era muito diferente.>
Em 2016, iniciei uma jornada que durou anos para expor uma das seitas mais abusivas do Reino Unido. >
Na época, já havia relatos de práticas duvidosas e mortes sem explicação, como a de um jovem cujo corpo foi encontrado em uma linha de trem.>
Meses depois, enquanto tomávamos chá na estação St. Pancras, em Londres, uma mulher que havia fugido do grupo quando era adolescente revelou a verdadeira escala dos danos causados pelo culto. Ela pediu para permanecer anônima.>
"Quantas vítimas entraram em contato com você", perguntei a ela. Eu esperava uma resposta talvez na casa dos dois dígitos.>
"Perto de 600 ou 700", respondeu ela, calmamente. Fiquei boquiaberto.>
Seguiram-se dois anos de entrevistas e investigações, até que a BBC publicasse nossas descobertas. Elas detalham o abuso generalizado de crianças e mostram evidências de ocultação dos casos pela alta liderança do grupo.>
Conhecida formalmente como Fraternidade de Jesus, a igreja fechou um ano depois.>
Intrigado pelas notícias na imprensa sobre o escândalo que se revelava, a diretora de documentários Ellena Wood começou sua própria investigação sobre o Exército de Jesus em 2022.>
Ela conversou com mais de 80 sobreviventes, além de familiares das vítimas. Dividido em duas partes, o filme é envolvente e, em certos trechos, angustiante.>
"Em muitos casos, fui a primeira pessoa com quem eles compartilharam suas experiências", ela conta, "e quase todos ainda estavam traumatizados. Em grande medida, foi um processo ao vivo para eles.">
"Um dos pontos que me surpreenderam foi que eles descrevem o que conhecemos como abuso sexual, mas sem entendê-lo como tal, ou se culpando por aquilo.">
"E, como cineasta, eu quis transmitir ao público que você não deixa simplesmente uma seita e segue com sua vida", prossegue Wood. "Ela pode informar tudo sobre você, suas decisões, sua forma de pensar, sua culpa, seus relacionamentos.">
Wood conta que se propôs a questionar as suposições sobre os motivos que fazem as pessoas permanecerem em seitas.>
Ela compara a situação com a ideia de sair de um relacionamento doméstico, agravada pela angústia de abandonar a família, os amigos, seu dinheiro, emprego e sistema de apoio, além da ameaça inerente de ir para o inferno.>
Ela conta, por exemplo, que um colaborador do grupo, Nathan, "mesmo lutando para aceitar o fato de ter sido aliciado e abusado sexualmente, admitiu que provavelmente retornaria ao Exército de Jesus, caso ele reabrisse".>
Para as crianças em particular, a vida nas diversas casas comunais do culto espalhadas pela região central da Inglaterra era intensa e repleta de perigos.>
Cerca de uma a cada seis crianças sofreu abusos sexuais, segundo uma análise das queixas por danos apresentadas por cerca de 600 indivíduos.>
As crianças eram separadas dos pais. Muitas vezes, elas dormiam em dormitórios ao lado de viajantes sem rumo e dependentes de drogas.>
Muitas eram submetidas a surras diárias e enfrentavam longas sessões de culto, com exorcismos e retratações de pecados.>
Ouvir o relato dos sobreviventes trouxe uma carga emocional para Wood.>
"Eu havia acabado de ser mãe e tinha conversas detalhadas de duas ou três horas sobre abusos, às vezes envolvendo incesto", explica ela. "Em seguida, meu filho vinha da creche e todas essas imagens mentais estavam na minha cabeça.">
"Você está formando estes relacionamentos que envolvem muito contato, muito reconforto, e tenta fazer o certo para todos. Por isso, às vezes, a carga é muito grande.">
Depois que o Exército de Jesus foi dissolvido, a BBC revelou que seu fundador, Noel Stanton (1926-2009), e seus chamados cinco apóstolos encobriram o abuso de mulheres e crianças, manipulando as denúncias.>
Um antigo ancião descreveu o líder da igreja como "pedófilo predatório". Ele me entregou um arquivo repleto de revelações e o acusou de estupro e abusos sexuais.>
Stanton morreu em 2009, sem responder por nenhuma das acusações.>
Wood afirma que "as pessoas tinham pavor e admiração por ele em igual medida. As crianças, principalmente, se mostravam completamente apavoradas". >
Mas a seita de Stanton era totalmente ruim ou terá começado como algo bom e se transformado em algo terrível?>
"Se eu fosse tentar adivinhar, diria a segunda opção", afirma Wood. "Acho que, quanto mais poder Noel tinha sobre alguém, mais controle ele sentia que precisaria ter.">
"Mas acho que o maior problema foi não relatar os abusos. As vítimas foram esquecidas e frequentemente sofreram gaslighting. Não há desculpas para isso.">
Ellena Wood sabe que muitas pessoas do Exército de Jesus tiveram experiências positivas.>
"Não foi horrível para todos, todo o tempo", explica ela, "e precisamos reconhecer que nada é preto ou branco no mundo.">
Em uma cena comovente do documentário, David, um ex-ancião forte defensor do grupo, irrompe em lágrimas com os cuidadosos questionamentos de Wood.>
"Ele reconhece que precisa começar a acreditar que o que as pessoas enfrentaram é real", ela conta. "E foi a primeira vez em que qualquer líder daquela igreja disse aquilo, foi um momento muito importante.">
A Fundação Fraternidade de Jesus, liquidante dos assuntos referentes ao Exército de Jesus, afirmou ter ficado perplexa com os abusos ocorridos e ofereceu um pedido de desculpas incondicional a todas as pessoas atingidas.>
No ano passado, um esquema de reparação, parcialmente financiado por seguro, pagou danos individuais a centenas de vítimas, no valor médio de cerca de 12 mil libras (cerca de R$ 89,5 mil).>
Ouça (em inglês) o episódio do podcast da BBC In Detail: The Jesus Army Cult, que deu origem a esta reportagem, no site BBC Audio.>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta