Publicado em 14 de novembro de 2025 às 06:43
Escalada para representar a música paraense na COP30 (30ª Conferência da ONU sobre Mudança do Clima), em Belém, a cantora Dona Onete, de 86 anos, só ganhou fama como artista depois de idosa.>
Onete tinha mais de 60 anos de idade quando criou um grupo de danças folclóricas e começou a fazer shows. Era o início de uma carreira que lhe renderia o título de "rainha do carimbó", um dos principais ritmos amazônicos.>
"[Me diziam:] 'Larga de ser professora, você canta muito bem'. E eu dizia: 'Não, primeiro eu vou me aposentar, porque e se não der?' Eu não tinha dinheiro e tinha dois filhos para criar'", ela lembra em entrevista à BBC News Brasil.>
Antes de se tornar cantora e adotar o nome artístico Dona Onete, Ionete da Silveira Gama passou décadas lecionando para crianças disciplinas como Geografia, História, Português e Matemática.>
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Uma carreira que, mesmo sem alçá-la à fama, a levou para o movimento sindical — onde testemunhou o nascimento da CUT (Central Única dos Trabalhadores) — e permitiu que rompesse um relacionamento abusivo de 25 anos.>
"Eu tive aonde me amparar: eu saí do meu casamento e entrei no movimento", diz Onete, que em 17 de setembro cantou em um palco no rio Guamá, em Belém, em um show preparatório para a COP30. >
Também se apresentaram no evento a cantora americana Mariah Carey e as brasileiras Joelma, Gaby Amarantos e Zaynara.>
A BBC News Brasil entrevistou Onete no Espaço Cultura Casa das Onze Janelas, em Belém. A cantora chegou pontualmente, mas a entrevista atrasou porque havia uma escada no caminho e Onete estava em cadeira de rodas — equipamento que usa por conta de problemas na coluna.>
Seguranças se ofereceram para conduzi-la escada acima, mas ela preferiu se levantar e vencer os degraus sozinha, caminhando. "Não me entrego para essa história de idade", disse, bem-humorada.>
Nascida em 1939 em Cachoeira do Arari (PA), no arquipélago do Marajó, Onete tinha 4 anos quando perdeu o pai e 9 anos quando perdeu a mãe.>
Ela foi criada pela avó paterna, Quitéria, uma parteira que morava em Belém e sempre viajava pelos interiores com a neta.>
Foi com Quitéria e outras parentes que Onete aprendeu sobre "os chás de cura, unguentos, remédios naturais e saberes da cultura amazônica" — conhecimentos que mais tarde compartilharia com seus alunos da escola.>
"As crianças precisam olhar mais para as estrelas, conversar com os animais, entender a floresta; precisam deixar a lua iluminar mais a sua imaginação", diz Onete em Entre banzeiros e remansos: memórias da professora Ionete da Silveira Gama.>
O depoimento faz parte da dissertação com que Josivana Castro Rodrigues, neta da cantora, obteve o título de mestre em Educação em Ciências e Matemáticas pela Universidade Federal do Pará, em 2023.>
A obra descreve o período que Onete viveu entre ribeirinhos em Igarapé-Miri (PA) "rodeada pelo imaginário mítico amazônico, cheio de novidades e de contato com a fauna e a flora".>
"O rio sempre foi minha escola. Muitas coisas que eu sei hoje foram graças a essas minhas travessias pelas águas do Marajó, Belém e Igarapé-Miri", ela disse à neta na dissertação.>
Onete se mudou para Igarapé-Miri com os tios aos 19 anos. Lá, casou-se, teve dois filhos e passou a auxiliar a sogra, Merandolina, que era parteira e curandeira.>
"Ionete era quem escrevia as receitas dos remédios que as entidades prescreviam em sua cabeça. As pessoas vinham de longe, muitas desenganadas dos médicos e, na maioria das vezes, passavam a estadia na sua casa, para alcançar a cura", conta a neta na dissertação.>
Enquanto acumulava saberes convivendo com os ribeirinhos, Onete também frequentava a escola para completar os estudos. Na infância, ela cursara só até a quinta série. "Minha avó dizia que já chegava, porque eu não ia ser doutora", diz.>
Ela afirma, no entanto, que a decisão de voltar às aulas depois de adulta lhe "custou muito caro" por conta da reação do marido.>
"Cada diplomazinho que eu pendurava na parede, ele dizia: 'Mais um diploma de burridade'", diz a cantora. "Ele estudou só até a quarta série primária, então, para ele, não era nada.">
"É preciso ter muita coragem de você se acalmar na casa, suportar, sabendo que mais adiante você vai sobreviver", ela lembra.>
Após concluir os estudos e se formar como professora, Onete passou a lecionar em escolas.>
"Quando eu tinha 240 horas de aula de história, eu tinha o dinheiro para fazer as minhas coisas e mandei ele embora", ela conta. "Eu saí da vida dele.">
O trecho em que fala do casamento é um dos raros momentos da entrevista em que Onete fica séria. Quando o assunto muda, porém, logo o bom humor e a postura afetuosa voltam. >
Onete costuma interromper raciocínios com gargalhadas e chamar o interlocutor de "meu amor". Já outra expressão que faz parte de seu repertório, "meus pretos", ela diz que está tentando evitar para evitar mal-entendidos. >
"'Meu preto' é uma coisa gostosa para mim", diz.>
"Muita gente me chamava assim quando eu era criança: 'minha pretinha, faça isso'".>
Onete diz que suas atitudes e música refletem o "chamego" presente na cultura paraense. "É um carinho que nós temos", explica.>
A própria Onete cunhou a expressão "carimbó chamegado" para definir seu estilo musical — uma versão mais sensual e romântica do carimbó, gênero dançante e regido por tambores com influências indígenas, africanas e ibéricas.>
"Chamego é aquele jeito gostoso de chegar, passar a mão na tua cabeça, te dar um cheirinho e ir embora. Não é namoro, não é nada", diz. >
Foi este o tratamento dispensado à equipe da BBC News Brasil, que naquela tarde encontrava Onete pela primeira vez.>
Assim que se divorciou, Onete entrou no movimento sindical em busca de melhores condições para os professores paraenses.>
Ela conta que, certa vez, acompanhou uma colega que foi cobrar salários atrasados ao prefeito de Igarapé-Miri.>
Segundo Onete, a colega tinha seis filhos e estava com dificuldades para pagar as contas. Ao confrontar o prefeito sobre os atrasos, no entanto, a mulher foi questionada sobre por que não buscava um trabalho que pagasse mais, já que tinha tantos filhos para sustentar.>
"A gente sabia que ele não estava errado, mas a gente não gostou do jeito que ele disse", conta Onete.>
"Então nós prendemos o prefeito lá, batemos prego na porta", conta.>
O prefeito escapou pela janela, mas acabou aceitando pagar os salários atrasados. "Não era fácil a briga", diz Onete.>
No início dos anos 1980, ela teve um novo desentendimento — este, com a diretora da escola, que não queria liberá-la para participar de uma das primeiras reuniões da CUT (Central Única dos Trabalhadores), em Brasília.>
Fundada em 1983, a entidade agregou diferentes categorias de trabalhadores e se tornou a maior central sindical da América Latina.>
Onete venceu o embate com a diretora e foi para o encontro, interessada em filiar sua associação de professores à CUT e defender a construção de universidades no interior do Pará.>
"Mas eles não queriam a gente, queriam só os trabalhadores rurais e metalúrgicos", ela lembra na entrevista à neta.>
Onete diz que, na época, os dirigentes sindicais também resistiam em aceitar mulheres no movimento, pois o Brasil ainda estava sob a ditadura militar (1964-1985) e havia risco de confrontos.>
"A gente só sabia correr, mas não sabia atirar. Ninguém sabia o que podia acontecer", diz.>
Mesmo assim, ela continuou frequentando os encontros e fez vários cursos oferecidos aos sindicalistas — experiência que depois aproveitou como professora.>
Onete sempre gostou de cantar, mas só depois da aposentadoria começou a se apresentar profissionalmente.>
Em entrevista ao blog El Cabritón, em 2021, ela narrou um dos eventos que precipitaram o início da carreira musical. Onete diz que estava cantando sozinha em casa enquanto um grupo de carimbó ensaiava na rua. Quando a ouviram, os músicos a convidaram a cantar com eles.>
"Não queria aceitar, mas meu segundo marido disse: 'Vai, pra você não ficar aí, idosa, deitada em uma rede, doente'. Ele sabia o que estava falando", disse a cantora ao blog.>
Pouco depois, ela mudou de banda e virou a protagonista do novo grupo num momento em que a música paraense vivia uma espécie de boom, capitaneado por nomes como a banda Calypso e Gaby Amarantos.>
Onete, porém, logo se destacou também no exterior. Seu primeiro disco, Feitiço Caboclo (2012), foi lançado quando Onete tinha 73 anos e chamou a atenção de críticos e produtores estrangeiros. >
Em 2015, o jornal britânico London Evening Standard classificou a música de Dona Onete como "animada e dançante, conduzida por um saxofone marcante e acompanhada por uma percussão ágil.">
Ela se apresentou em países como Estados Unidos, Portugal, França e Reino Unido — incluindo uma participação no programa LatAm Beats, na BBC em Londres, em 2014.>
No Brasil, a carreira ganhou impulso com o sucesso de canções que celebram símbolos paraenses. >
Entre elas estão Jamburana (2013), que enaltece as propriedades do jambu — erva típica da culinária local —, e No meio do pitiú (2016), que narra um namoro entre um urubu e uma garça no Mercado Ver-o-Peso, em Belém.>
Com a fama, músicas de Onete também passaram a ser gravadas por artistas famosas — caso de Banzeiro, gravada por Daniela Mercury em 2023, Mestiça, gravada por Gaby Amarantos, em 2012, e Pedra sem valor, por Fafá de Belém, 2015.>
Em entrevista à revista Trip, Amarantos disse que Onete "oxigena a cena da música paraense, mantendo a chama viva".>
Para Fafá de Belém, Onete "é o símbolo de todas as mulheres do Pará". "Ela carrega nela impressa toda a nossa natureza", afirmou a cantora à revista. >
Aos 86 anos, Onete segue fazendo shows, mas com menos frequência. E deixou de atender os convites para se apresentar no exterior. >
"Foi difícil ter de andar de cadeira de rodas, mas não me entrego. Ainda me sinto como se tivesse uns 70 anos", afirma. >
Depois de viver tantos acontecimentos ao longo de quase nove décadas, qual conselho Onete daria a si mesma jovem?>
"Não teria ido me casar para o interior para passar o que eu já passei, mas também foi este interior que me deu o que eu sou agora", afirma.>
"Conhecimento, ser professora, ter toda essa música que eu canto…">
"Eu sou dona da minha história. Eu caminhei pelo caminho errado, mas depois eu me achei no caminho certo.">
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