Publicado em 21 de fevereiro de 2021 às 14:06
- Atualizado Data inválida
No dia 1º de fevereiro, Mayumi, 50, sentiu-se mal e teve febre de 38°C. Ela ligou para o centro de saúde da cidade de Toyohashi, a 283 km de Tóquio, para relatar os sintomas e verificar a possibilidade de realizar o teste para Covid-19. Do outro lado da linha, a atendente perguntou se ela havia tido contato com alguém infectado. "Não que eu saiba", respondeu.>
Logo depois, ela foi ao centro de saúde, conforme orientação que recebeu, mas a realização do exame não foi autorizada. "Disseram que, diante do aumento de casos, eles não estavam fazendo nem PCR [exame para detectar coronavírus] nem teste de influenza. Disseram para procurar uma clínica particular se quisesse ser testada.">
Diante da disparada de casos e da sobrecarga do sistema médico no Japão, que desde o fim de novembro atravessa a terceira onda de infecções, pessoas com sintomas de Covid-19 estão enfrentando encruzilhadas como esta: escolher entre pagar para descobrir se estão infectadas e realizar quarentena por conta própria ou seguir a vida, sob o risco de expor outros ao vírus.>
Mayumi preferiu saber. Dirigiu até uma clínica e foi atendida dentro do carro, onde mediram seus níveis de oxigênio e temperatura e colheram seu sangue. Ao todo, graças ao seguro, ela desembolsou cerca de 3.000 ienes (R$ 150).>
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Mário, 45, por outro lado, preferiu não saber. "Tive todos os sintomas, inclusive a perda do paladar", diz. Entretanto, ele decidiu se isolar e esperar a recuperação em sua casa, na Tóquio. "Está uma caça às bruxas, inclusive entre brasileiros", relata ele, radicado há quase 20 anos no Japão.>
O caso da estudante vietnamita Kim, 20, foi mais grave. Ela se sentiu muito mal na manhã de 23 de dezembro, com dor de cabeça e no corpo todo. No dia seguinte, véspera de Natal, piorou: teve tontura, dor de garganta terrível e uma febre na casa dos 38,3°C. No dia 26, quando perdeu o paladar e o olfato, decidiu procurar ajuda. Primeiro, foi a uma clínica particular, onde o teste custava 40 mil ienes (R$ 2.000).>
Depois, decidiu ligar para um centro de saúde para relatar os sintomas e pedir o teste. O sistema estava tão sobrecarregado que ela só conseguiu ser atendida por telefone na manhã do dia 27. No centro de saúde, ela passou por raio-X, teste de influenza e PCR -ao todo, pagou 8.000 ienes (R$ 410). O resultado positivo para Covid-19 veio após 15 minutos de espera.>
Ela foi medicada e orientada a voltar para casa e esperar por uma ligação da central para saber se deveria ficar em casa ou dar entrada em um hospital ou hotel, onde alguns pacientes com casos leves de Covid-19 estão sendo acomodados para evitar espalhar o vírus. Como Kim divide a casa, hotel era a alternativa mais provável. À noite, ligaram e indicaram que, no dia 29, ela deveria se dirigir ao hotel em Ikebukuro para um isolamento de quatro dias.>
Kim se recuperou e voltou para casa no dia 2 de janeiro, mas a marca ficou. "Minha colega de apartamento ficou brava quando voltei do hotel. 'Por que você está em casa? Você não devia ter voltado', ela me disse e brigamos.">
Mayumi, Mário e Kim são nomes fictícios. Isso porque, além da falta de leitos e das limitações para testes, há um estigma com relação a pessoas com suspeita, sintomas e diagnóstico de Covid-19 no Japão.>
No arquipélago, 67% temem mais o estigma social do coronavírus do que os riscos para a saúde, indicou uma enquete do jornal Asahi Shimbun, realizada entre novembro e dezembro de 2020 e divulgada em janeiro de 2021.>
No início do ano, uma jovem, na casa dos 30 anos, foi encontrada morta em seu apartamento, em Tóquio. Ela teve diagnóstico do vírus, mas estava assintomática e, por isso, tratava-se em casa. "Sinto muito por causar transtorno a outras pessoas", dizia o bilhete que ela deixou.>
Tratar-se em casa se tornou uma indicação de praxe a pacientes assintomáticos ou com sintomas leves, o que também traz riscos. Em dezembro, morreram 56 pessoas em tratamento domiciliar, de acordo com a Agência Nacional de Polícia. Em janeiro, foram 132. Até 10 de fevereiro, foram 7, todos idosos.>
Neste mês, o governo japonês instituiu um tipo de "ministro da solidão" para dar assistência a pessoas isoladas em casa, principalmente idosos, 28,7% da população -a maior do mundo em proporção. Em alta, o suicídio é uma das principais preocupações da pasta, coordenada por Tetsushi Sakamoto.>
Entre estigma, silêncio e solidão, há uma série de singularidades no enfrentamento à Covid-19 no Japão. Desde dezembro foram registrados diversos casos de pessoas que morreram em casa à espera de leitos e até de exames.>
Testes PCR são indicados para quem passa por uma triagem nos centros de saúde de cada cidade, como o registro de sintomas e contato com infectados ou focos onde ocorreram contágios confirmados. Desde o início da pandemia, o país foi alvo de críticas por não testar massivamente a população. Até o fim de 2020, a alternativa para assintomáticos ou pessoas possivelmente expostas eram exames caros em clínicas particulares, na casa de 25 a 40 mil ienes (R$ 1.270 a R$ 2.000).>
Devido à alta demanda, instituições particulares passaram a oferecer opções de exames com custo reduzido. Uma delas oferece um kit para teste de saliva a 1.980 ienes, cujo resultado pode ser entregue por email (expresso) por 9.900 ienes, com certificado em japonês e inglês, totalizando 11.880 ienes (R$ 607).>
Detalhe: diagnósticos confirmados em clínicas particulares não necessariamente são incluídos nos números oficiais de casos no país.>
Diferentemente de outras ondas atravessadas pelo arquipélago, desta vez estão sendo registrados muito mais casos e mais graves, o que sobrecarrega o sistema médico-hospitalar, público e particular.>
Segundo a agência japonesa Kyodo, até 25 de janeiro, 15 mil pessoas estavam à espera de leitos para Covid-19. O Japão possui 12,98 leitos para cada 1.000 habitantes, a maior média per capita entre os países desenvolvidos, de acordo com a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), mas a maioria é para doenças leves -são apenas 5 leitos de UTI por 100 mil habitantes.>
Organizações nipônicas vêm alertando para o risco de colapso do sistema nacional de saúde há tempos.>
No Japão, todos os residentes devem contribuir mediante impostos com um seguro público, como Kokumin kenko hoken (seguro de saúde) ou Shakai hoken (seguro social), que cobre 70% das despesas médico-hospitalares. Os 30% restantes são pagos pelo paciente às instituições médicas. Ou seja, o modelo é público, mas não inteiramente gratuito como o SUS, no Brasil, já que a maioria das instituições é particular (70%).>
No entanto, de acordo com dados o Ministério da Saúde, dos 3.008 hospitais particulares na ativa, 30% conseguem atender pacientes com Covid-19. Para Kentaro Iwata, diretor da Divisão de Doenças Infecciosas da Universidade de Kobe, o sistema nacional de saúde é muito bom por contemplar atendimento a todos. "Mas também tem falhas -e a ineficiência é uma delas. Muitos leitos hospitalares são usados para cuidados de doenças subagudos e crônicas, então é impossível usá-los para Covid", diz Iwata.>
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