Publicado em 12 de julho de 2025 às 16:39
"Fizemos de forma muito parecida com a dos [soldados] americanos no Vietnã", explicou o diretor Francis Ford Coppola sobre a filmagem de Apocalypse Now (1979) após sua exibição no Festival de Cannes, na França.>
"Estávamos na selva. Éramos muitos. Tínhamos acesso a muito dinheiro, muito equipamento e, pouco a pouco, fomos enlouquecendo.">
A imprensa documentou, na época, a atribulada produção do épico brutal e psicodélico de Coppola, desde os problemas financeiros até a substituição de atores, questões de saúde e o clima extremo.>
Mas a verdadeira extensão do caos só ficaria clara em 1991, com o lançamento do documentário Francis Ford Coppola: O Apocalipse de um Cineasta. >
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O filme teve como base as extensas imagens produzidas durante as filmagens feitas pela esposa do diretor, Eleanor Coppola (1936-2024). Elas ilustram uma produção com escopo, visão e ambição espetaculares, mas igualmente confusa, marcada pelo uso de drogas e repleta de contratempos aparentemente insuperáveis.>
Dois jovens diretores — Fax Bahr e George Hickenlooper (1963-2010) — receberam a tarefa de analisar todas as imagens, rolo após rolo, para dar sentido àquela maluquice e contar a envolvente história da produção do filme. >
O documentário foi agora restaurado em 4K e voltou aos cinemas dos Estados Unidos e da Europa.>
Bahr ainda se lembra do primeiro dia em que viu as filmagens de Eleanor Coppola, que ficaram esquecidas e praticamente intocadas por mais de uma década.>
"Havia alguns relatos que diziam 'oh, existe muita coisa fora de foco'", conta ele à BBC. "Mas os rolos que observamos eram extraordinários.">
"Apenas belas filmagens. Claramente, ela havia gravado copiosamente tudo o que estava acontecendo. Era uma verdadeira mina de ouro.">
Apocalypse Now é uma adaptação livre do romance Coração das Trevas (Ed. Cia. de Bolso, 2008), de Joseph Conrad (1857-1924), publicado originalmente em 1899.>
O filme é considerado uma das maiores obras da história do cinema, mas sua produção quase se desintegrou em diversos estágios.>
Quando as filmagens começaram nas Filipinas, em março de 1976, elas estavam programadas para durar cinco meses. Mas acabaram levando mais de um ano.>
Coppola demitiu seu principal ator, Harvey Keitel, poucas semanas depois do início das filmagens. Ele foi substituído por Martin Sheen, que sofreu um ataque cardíaco durante a produção — que, por pouco, não foi fatal.>
Um tufão destruiu completamente cenários de alto custo e alguns atores foram infectados por parasitas. Outros participaram de festas e consumiram drogas durante as filmagens.>
Marlon Brando (1924-2004) interpretava o coronel Kurtz, ausente das forças armadas sem licença. Mas o ator apareceu para as filmagens muito acima do peso e totalmente despreparado, levando Coppola a reescrever e filmar o fim do longa de acordo com as suas condições.>
Com o passar do tempo, o filme ultrapassou em muito seu orçamento. Coppola assumiu para si o financiamento da obra — e teria ficado arruinado, se não tivesse recuperado o dinheiro.>
Eleanor Coppola afirma no seu livro Notes on the Making of Apocalypse Now ("Notas sobre a produção de Apocalypse Now", em tradução livre) que, mesmo depois do fim das filmagens, durante a pós-produção, Coppola acreditava que tinha apenas 20% de probabilidade de montar um filme viável com o resultado das filmagens.>
O documentário mostra uma produção que pretendia recriar a Guerra do Vietnã (1955-1975). E, de muitas formas, ela acabou espelhando muitos padrões de comportamento idênticos aos verificados entre os soldados combatentes.>
O fotojornalista e fotógrafo de guerra holandês Chas Gerretsen tem a experiência necessária para fazer esta comparação. Ele vivenciou o set de filmagem por seis meses e seus resultados foram compilados no livro Apocalypse Now: The Lost Photo Archive ("Apocalypse Now: o arquivo de fotos perdido", em tradução livre), de 2021.>
"O Vietnã foi insano. Apocalypse Now, um pouco menos que isso", declarou Gerretsen à BBC. >
As condições adversas eram totalmente exóticas para a maioria das pessoas que participaram do filme.>
"A equipe se queixava muito do calor, da umidade, dos quartos de hotel, percevejos e mosquitos", ele conta. "A lama — às vezes, na altura dos joelhos — era um verdadeiro desafio.">
Damien Leake interpretou no filme um operador de metralhadora. Ele participou das filmagens por três semanas e também se lembra do ambiente físico como sendo algo que ele nunca havia visto antes.>
"A primeira coisa de que me lembro é de sair do avião e sentir a umidade como se fosse um pano molhado", conta ele à BBC. "Criado em Nova York [EUA], sei o que é umidade, mas aquilo era inacreditável.">
A água para beber não era segura para consumo, lagartixas subiam pelas paredes da cabana onde ele se hospedou e o clima era bíblico, segundo ele.>
"Chova todos os dias", relembra Leake. "Chovia como se o clima estivesse com raiva de você. Chovia em lâminas, como eu nunca havia visto antes.">
À medida que a produção se arrastava, tudo ficava mais difícil para a equipe de produção e os atores, que começaram a sentir saudades de casa.>
"Eles eram muito parecidos com os soldados do Vietnã, que nunca haviam saído de casa para nenhum lugar mais longe que o Canadá", relembra Gerretsen. "Havia muitos com saudade de casa.">
"Um membro da equipe ia para Manila [a capital filipina] quase todos os fins de semana — uma viagem de três a quatro horas, só de ida, em uma estrada ruim. Ele ficava em um quarto de hotel com vista para o aeroporto, só para observar os voos saindo para os Estados Unidos.">
A visão de Coppola desmoronava cada vez mais com o passar do tempo. Ele não conseguia particularmente decidir qual seria o final do filme. Tanto é assim que, até hoje, o fim do longa varia nas suas diferentes edições e versões.>
"Eu chamava o filme de a idiodisseia", declarou Coppola na época, como ficou gravado no documentário. "Nenhuma das minhas ferramentas, nenhum dos meus truques, nenhuma das minhas formas de fazer funciona para este final.">
"Tentei tantas vezes que sei que não posso fazer. Pode ter sido uma grande vitória saber que não consigo fazer. Não consigo escrever o final deste filme.">
Mas seus atores aparentemente mantiveram seu compromisso e sua fidelidade.>
"Os atores andariam sobre o fogo por Francis" se fosse preciso, conta Leake, "porque ele dava muita liberdade e um sentido de que eles conseguiriam fazer aquilo [aquela cena/personagem] sozinhos.">
"Ele então moldava aquilo no que ele queria. Você não pode pedir mais do que isso.">
Enquanto muitos sofriam com a saudade de casa, a experiência de Leake foi diferente. Ele relembra seu tempo durante as filmagens como "as três semanas mais gloriosas da minha vida".>
"Eu saía para me encontrar com os filipinos, que eu adorava", ele conta. "Eu os achava maravilhosos.">
"Eu me apaixonei por uma bela garota e, se tivesse um papel maior no filme, provavelmente estaria lá até hoje. Adorei aquilo.">
Quando Bahr começou a examinar as imagens, ele percebeu o milagre que foi a existência do filme em si.>
"Eu sabia que tinha sido um extremo desafio extrair aquele filme, mas, só mergulhando nos pormenores das filmagens, é possível realmente entender os horríveis obstáculos que eles enfrentaram", afirma Bahr.>
A própria tarefa de contar a história por trás da história foi um desafio único. Ele precisou pesquisar cerca de 80 horas de filmagens.>
"O primeiro corte do documentário tinha quatro horas e meia", relembra Bahr, "porque Ellie [Coppola] continuou filmando após o término da produção e tínhamos um capítulo pós-produção completo [no corte original].">
É claro que ocorreram muitos dramas naquele processo, mesmo quando Coppola e sua equipe saíam da selva e voltavam ao conforto do estúdio.>
"Um dos editores se escondeu com a cópia em um quarto de hotel", relembra Bahr. "Ninguém conseguia encontrá-lo e eles pensaram que tudo havia sido roubado.">
"Ele, então, devolveu celuloides queimados em envelopes, dizendo: 'Estou me livrando do filme, cena por cena'. Eles estavam simplesmente perdendo a cabeça.">
Felizmente, as diferenças criativas que causaram o rompimento foram resolvidas, antes que surgisse algum dano mais sério.>
Bahr relembra o momento em que ficou sabendo que o documentário havia descoberto algo fundamental.>
"A descoberta das fitas de áudio de Francis, feitas por Ellie, foi reveladora." Ele se refere às gravações de áudio que aparecem no documentário sobre cenas do filme.>
"Ellie era a única pessoa do mundo capaz de capturar Francis daquela forma, tão próxima e pessoal", segundo Bahr.>
"Aquilo coloca você em contato com um mestre americano nos seus momentos mais privados. Foi uma visão real do próprio centro de criatividade: suas dúvidas, preocupações, angústias e seu trabalho com estas ideias. Foi incrivelmente especial.">
Coppola deu a Bahr e Hickenlooper sua bênção para fazerem o que quisessem com as filmagens. Sua única instrução foi: sejam honestos.>
"Ele disse 'há algumas coisas feias que aconteceram aqui, mas, se vocês contarem a história honestamente, terão o meu apoio'", relembra Bahr.>
O único pedido que ele fez foi que a narração, feita por um locutor, fosse regravada pela sua esposa. Afinal, o material era dela e, de muitas formas, aquela era uma história vista pelos olhos dela.>
A jogada de mestre final fez com que o documentário se parecesse ainda mais com a visão de alguém que estava do lado de dentro das filmagens.>
"A melhor impressão que recebo sobre o documentário é que ele é um acessório necessário para compreender Apocalypse Now", segundo Bahr.>
"As pessoas dizem 'bem, eu vi Apocalypse Now e adorei, mas, depois de ver seu documentário, entendo de forma mais abrangente'. Este é o melhor elogio possível.">
Para Bahr, Apocalypse Now é totalmente único.>
"Foi um filme único na história da cinematografia", segundo ele. "Não acho que alguém, algum dia, irá conseguir fazer algo como aquilo de novo.">
"Não só porque Francis estava pronto para apostar toda a sua fortuna no filme, mas também devido à ambição. Quero dizer, ele se dispôs a ir até as Filipinas, recriar o Vietnã para a equipe e fazer com que toda a companhia passasse por aquela experiência. Era uma visão brilhante.">
Para Gerretsen, suas experiências se tornaram algo quase impossível de se diferenciar das suas lembranças das verdadeiras zonas de guerra.>
"As explosões, a fumaça colorida, as horas de espera para formar a cena — tudo é misturado", explica ele.>
Quando Guerretsen assistiu ao filme pronto, o impacto foi significativo.>
"Foi incrível como ele trouxe tudo de volta", segundo ele. "Era uma obra-prima, sem dúvida, mas só consegui assistir de novo vários anos depois.">
"As guerras do Vietnã e do Camboja [1967-1975], além de Apocalypse Now, continuam comigo porque a insanidade da guerra ainda está entre nós.">
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.>
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