Publicado em 4 de agosto de 2025 às 18:25
Nós nos concentramos tão fixamente nos espinhos radiantes da sua coroa e no vigor da sua tocha cintilante que esquecemos por completo os grilhões da escravidão humana que a Dama da Liberdade tem sob seus pés.>
A Estátua da Liberdade, em Nova York, nos Estados Unidos, é o centro de um novo capítulo das guerras culturais que se intensificam no país.>
A estátua tem um significado diverso, com muitas ramificações. E, como toda grande obra de arte, ela é o confuso fruto de inúmeras fontes de inspiração.>
Elas variam desde a deusa romana Libertas até o deus grego do sol, Hélios, passando pela multifacetada deusa egípcia Ísis — que era motivo de fascinação para o criador da escultura, o artista francês Frédéric-Auguste Bartholdi (1834-1904).>
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A obra parece destinada a gerar discussões. Ela é a imponente incorporação de uma verdade evidente sobre os símbolos culturais: a de que suas verdades nunca são evidentes.>
A escultura de Bartholdi tem 46 metros de altura e é feita de cobre. Ela foi habilidosamente construída pelo engenheiro francês Gustave Eiffel (1832-1923) e apresentada formalmente aos Estados Unidos como um presente da França no dia 4 de julho de 1884.>
Mas o motivo da atual controvérsia é uma surpreendente pintura da artista afro-americana contemporânea Amy Sherald, reimaginando a Estátua da Liberdade como uma mulher negra transgênero.>
No início de julho, Sherald foi alertada que sua obra, intitulada Trans Forming Liberty ("Trans Formando a Liberdade", em tradução livre), poderia irritar o presidente americano Donald Trump, que emitiu em janeiro uma ordem executiva, reconhecendo apenas dois sexos (masculino e feminino).>
Por isso, a pintura não deveria ser incluída na exibição de suas obras na Galeria Nacional de Retratos do Instituto Smithsonian, em Washington DC, nos Estados Unidos, que é mantida com fundos do governo federal.>
Até então, Sherald era mais conhecida pelo retrato oficial da ex-primeira-dama americana Michelle Obama, em 2018. E, em vez de considerar a retirada da obra, ela decidiu cancelar a exposição, pelo que chamou de "cultura da censura".>
A obra em questão se encontra atualmente em exibição no Museu Whitney, em Nova York. Ela faz parte da exibição itinerante de Sherald intitulada American Sublime e é uma amostra característica do instinto da artista, de deslocar seus temas e desestabilizar as expectativas.>
Sherald costuma atingir este objetivo com frequência. Foi o que ocorreu no retrato de Michelle Obama e em Trans Forming Liberty.>
Ela traduz a aparência das pessoas retratadas em uma escala de cinza (ou "grisalho") incomum, incentivando o observador a olhar além da cor da pele e reavaliar seus conceitos sobre o que constitui raça.>
A modelo para a obra de Sherald, Arewà Basit, é uma artista negra que se identifica como mulher trans não binária.>
Ela é retratada contra um fundo rosa plano, com uma das mãos nos quadris e um vestido azul vibrante, que relembra a resplandescência sobrenatural das Madonas da Renascença. Seus cabelos têm um marcante tom de rosa.>
A tocha que ela ergue na mão direita foi substituída por um buquê de humildes gérberas, um símbolo tradicional de alegria e esperança.>
Esta sutil subversão relembra vagamente a mensagem pelo desarmamento do Atirador de Flores de Banksy, que também é poderoso pela sua impotência.>
Sobre esse poder proposto pela sua obra, Sherald explicou para a rede de TV americana ABC que seu quadro "existe para dar espaço a alguém cuja humanidade foi politizada e desprezada".>
Este sentimento certamente vem de encontro ao espírito de hospitalidade da própria estátua, conhecida por exibir no seu pedestal um soneto de Emma Lazarus (1849-1887), invocando "os desabrigados, lançados pela tempestade, suas massas reunidas, ansiando por respirar em liberdade".>
Esta sincronicidade pode ser o apelo mais profundo da pintura, mas também seu maior passivo.>
Desde sua inauguração, em outubro de 1886, a Estátua da Liberdade provocou críticos dos dois extremos do espectro político.>
As defensoras do voto feminino afirmavam que a ilustração de uma mulher incorporando a liberdade era irônica demais para ser levada a sério, já que as mulheres não detinham o direito ao voto.>
Paralelamente, os conservadores questionaram a eventual incitação aos migrantes para que se dirigissem aos Estados Unidos — as tais "massas reunidas" convocadas silenciosamente pela escultura.>
Ao resgatar a Dama da Liberdade como um monumento de promessas não cumpridas, a obra de Sherald pretende fazer estremecer as bases da consciência americana.>
Até o momento, nem o presidente Trump, nem ninguém do seu governo condenou publicamente a pintura de Sherald ou sua representação de uma mulher negra transgênero.>
Mas os organizadores da exposição, que tinha estreia prevista para 19 de setembro, tinham razões para recear repercussões iminentes sobre seu financiamento, se a obra fosse exibida.>
Em março, Trump assinou uma ordem executiva intitulada "Restaurando a verdade e a sanidade da história americana".>
Seu objetivo é restringir o apoio financeiro governamental a museus e projetos que, segundo suas palavras, "degradarem os valores americanos comuns, discriminarem os americanos com base na raça ou promoverem programas ou ideologias inconsistentes com as leis e a política americana".>
Alegando que o Instituto Smithsonian estaria "sob a influência de uma ideologia discriminatória, baseada na raça", Trump instruiu o vice-presidente J.D. Vance a executar sua ordem. >
E foi apenas questão de tempo para que a releitura da Dama da Liberdade por Amy Sherald, como mulher negra transgênero, chamasse a atenção de Vance.>
Após uma reunião com o vice-presidente, os organizadores da exposição começaram a repensar sobre a inclusão da pintura no evento, o que levou a pintora a abandonar o projeto.>
Uma fonte anônima citada pela rede de TV americana Fox News afirmou que, durante a reunião, Vance expressou sua preocupação com a natureza woke da obra de Sherald.>
Nos últimos meses, a ordem executiva assinada por Trump intensificou os confrontos sobre qual tipo de história é contada pelos símbolos nacionais americanos — ou qual seria a história autorizada a ser contada.>
Um dos focos de conflito mais notáveis é o Parque Histórico Nacional da Filadélfia, no Estado americano da Pensilvânia. Lá fica o Sino da Liberdade, símbolo histórico dos Estados Unidos.>
A Casa Branca ordenou que a instituição revisasse todos os seus programas até o final de julho de 2025, para garantir que suas narrativas "relembrem aos americanos o extraordinário patrimônio [da nação], o progresso consistente para transformá-la em uma União mais perfeita e ofereçam um registro inigualável do avanço da liberdade e da prosperidade".>
Uma questão específica terá recebido atenção específica, que é a inclusão, nos cartazes informativos do parque, de informações como o fato de que o primeiro presidente americano, George Washington (1732-1799), era proprietário de escravos, a brutalidade que sofriam as pessoas escravizadas e o tratamento dado aos nativos americanos.>
Seja qual for a decisão sobre o tom e o conteúdo das exposições do Parque Histórico Nacional da Independência e de outros museus e instituições federais dos Estados Unidos que, agora, estão passando por revisões, é difícil controlar a ressonância do simbolismo cultural, por mais tenaz que seja o governo nas suas tentativas.>
Existem sinais que não podem ser desfeitos. Suas marcas permanecem. >
A exclusão do quadro de Sherald da visão do público, provavelmente, serviu apenas para amplificar sua exposição e impacto. Afinal, o que chama mais atenção do que algo que foi escondido?>
Em relação à Estátua da Liberdade, Eiffel teve a premonição de construir a escultura sobre uma estrutura flexível com pilares de ferro fundido, que funcionam como uma rede de molas.>
Esta estrutura permite que a fina cobertura da estátua se flexione e trinque sem se quebrar, garantindo a sobrevivência da obra frente às turbulências do tempo.>
Será que o significado elástico da palavra "liberdade" será tão resiliente quanto a estátua que leva seu nome?>
A exposição American Sublime, de Amy Sherald, está em cartaz no Museu Whitney de Nova York, nos Estados Unidos, até o dia 10 de agosto.>
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.>
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