Publicado em 10 de julho de 2025 às 17:38
A bebedeira começou às 10h39 da manhã. Vinte cervejeiros tinham acabado de entrar no bar, dentro de uma cervejaria na República Tcheca, um dos grandes produtores de cerveja do mundo. >
Levantei minha caneca de cerveja tipo pilsen com três dedos de espuma no topo e brindei com Liam Taheny, um produtor de cerveja artesanal do sul da Austrália. >
Quando perguntei o que mais o impressionava na cultura cervejeira tcheca, ele não hesitou. "O conhecimento de cerveja, e tudo relacionado a ela, é simplesmente impressionante aqui." >
"Você diz isso por que conversou com cervejeiros tchecos?", perguntei. >
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"Estou falando de pessoas comuns. Elas falam sobre cerveja de um jeito que só um mestre cervejeiro ou um nerd de cerveja falaria lá na Austrália." >
Taheny, mestre cervejeiro da Brightstar Brewing, foi um dos 20 cervejeiros da Austrália, do Canadá e dos Estados Unidos recentemente convidados pelo Ministério da Agricultura da República Tcheca para passar cinco dias imersos na cultura de cerveja do país. >
Mas não foi só uma farra regada a cerveja. O itinerário incluiu encontros em grandes e pequenas cervejarias, com produtores de lúpulo, bartenders e donos de bares — tudo parte de um experimento do governo tcheco chamado de "diplomacia da cerveja".>
A República Tcheca – e especificamente a região da Boêmia — é famosa há muito tempo pelo seu pivo (cerveja, em tcheco). Afinal, seus moradores vêm fabricando essa bebida desde pelo menos o ano de 993 d.C.>
Os tchecos consomem mais cerveja per capita do que qualquer outro país do mundo (quase o dobro do segundo colocado, a vizinha Áustria).>
Em muitos lugares do país, a cerveja é mais barata que uma garrafa de água mineral. Não é à toa que o país se vende como o principal destino cervejeiro do mundo. >
Ainda assim, entre os verdadeiros aficionados por cerveja, a lager tcheca sempre foi relativamente subestimada, ofuscada pelas ales belgas, pelas cervejas bávaras, da Alemanha, e pela febre mundial das IPAs. >
Isso pode ser atribuído ao passado tumultuado da região: foram 41 anos atrás da "Cortina Ferro", que separava Europa sob influência soviética. Isso tornava as cervejas tchecas difíceis de se encontrar no exterior.>
E, nas décadas desde o fim do comunismo, em 1989, as cervejarias tchecas tiveram que se privatizar e modernizar, atualizando a tecnologia de produção. >
Mas as coisas estão mudando, e as lagers — especialmente as lagers ao estilo tcheco — estão finalmente ganhando reconhecimento. >
Desde 2019, uma rede de diplomatas e cervejarias tem trabalhado nos bastidores para aumentar a visibilidade da cerveja tcheca e inspirar cervejeiros estrangeiros a produzirem lagers autênticas no estilo tcheco: refrescantes, encorpadas, com notas amargas, muitas vezes com um leve sabor amanteigado no final e servidas com uma generosa camada de espuma. >
O Ministério da Agricultura não tem estatísticas, mas, desde que o governo começou a receber cervejeiros de todo o mundo, as lagers tchecas de produtores artesanais têm surgido em toda a América do Norte — os cervejeiros australianos só foram incluídos recentemente nos encontros anuais sobre cerveja. >
É uma estratégia que lembra o Programa Global Thai, da Tailândia, uma forma de soft power comestível lançado em 2002 para promover restaurantes e a culinária tailandesa no exterior.>
Esse esforço levou a um boom de restaurantes tailandeses ao redor do mundo e ajudou a colocar a Tailândia no mapa da gastronomia global. >
Quando o programa começou, havia 5,5 mil restaurantes tailandeses fora da Tailândia; em outubro de 2023, já eram quase 17,5 mil, de acordo com algumas estimativas. A revista The Economist cunhou rapidamente o termo "gastrodiplomacia". >
Agora, a República Tcheca está seguindo os passos da Tailândia com sua missão de seis anos de "diplomacia da cerveja". Afinal, seguindo a lógica por trás disso, diferente da culinária tailandesa, a comida tcheca não faz exatamente sucesso com os estrangeiros. Mas uma coisa que os tchecos sabem fazer bem é cerveja. >
Eu pude ver o programa em ação quando fui convidado a me juntar aos cervejeiros por algumas noites. >
Em uma das noites, nos esprememos dentro de uma pequena cervejaria artesanal chamada Pioneer Beer, na cidade de Žatec, no norte da Boêmia, lar do cobiçado lúpulo Saaz, que é um ingrediente essencial nas lagers ao estilo tcheco desde que a Pilsner Urquell criou a primeira golden lager em 1842.>
Os cervejeiros se reuniram em volta do mestre cervejeiro Michal Havrda e começaram a bombardeá-lo de perguntas, usando termos como "decocção" e "floculação". >
Alguns dias depois, eles tiveram uma conversa animada com Vaclav Berka, mestre cervejeiro aposentado da Pilsner Urquell, na cidade de Plzeň, e com Adam Brož, atual mestre cervejeiro da Budvar, em České Buděvice, duas das maiores cervejarias do país. >
Eles também passaram um tempo na Lukr, uma empresa inovadora de Plzeň que fabrica torneiras de abertura lateral, que regulam melhor o fluxo de cerveja, permitindo que o copo seja servido com a clássica e cremosa camada de espuma, tão característica da cerveja tcheca. >
"Se você servir do jeito certo, com uma boa camada de espuma, ela vai adicionar uma doçura e cremosidade à sua bebida que vai permanecer no seu paladar até o último gole", explicou Ondřej Rozsypal, mestre de chope da Lukr e eleito o bartender do ano em 2022.>
Quando a Lukr começou a vender as torneiras especiais para lager tcheca em 2015, a empresa vendeu uma dúzia para a América do Norte. Hoje, a companhia vende até 2 mil por ano para bares e tap rooms em todos os cantos dos Estados Unidos e do Canadá — e os esforços da diplomacia da cerveja são uma das razões para o aumento na popularidade.>
Poucos dias antes, no famoso pub Lokál, em Praga, conhecemos Lucie Janečková, gerente do Instituto Pivo, onde ela dá cursos sobre métodos corretos de servir cerveja e faz tours focados na bebida pela cidade. >
"Me dá uma tristeza enorme ver um bartender destruindo uma cerveja ao servi-la do jeito errado", disse. >
"A cultura cervejeira tcheca é sobre respeitar o processo de servir a cerveja, e estamos tentando ensinar isso para cervejeiros estrangeiros, porque fazemos isso há mais tempo do que qualquer outro lugar no mundo.">
Como mostrou a demonstração na Lukr, os tchecos reverenciam o processo de produção de cerveja — e essa nova iniciativa é o exemplo mais recente de como um país apaixonado por cerveja está ensinando ao mundo a beber do jeito certo. >
"Você precisa ser realmente muito bom em produzir cerveja para conseguir fazer uma lager no estilo tcheco de verdade. E é exatamente isso que eles fazem aqui", disse Meghan Michels, cervejeira da Holy Mountain Brewing Company, de Seattle, nos Estados Unidos.>
"Eles fazem isso há séculos. Você precisa vir aqui e provar a original para ter uma ideia de como a lager tcheca deve ser.">
Ryan Moncrieff, proprietário e mestre cervejeiro da Rafter R Brewing Company, em Maple Creek, no Canadá, concordou: "Nós temos cerveja tcheca no Canadá e não tem o mesmo gosto. Nunca está muito fresca", disse. >
"Do ponto de vista de um cervejeiro, a única forma de saber o gosto verdadeiro da cerveja tcheca é ir até a fonte. Assim, se um tcheco for à minha cervejaria e falar 'isso tem gosto de casa', eu vou saber que acertei em cheio.">
A verdade é que, assim como vários produtos para consumo, a cerveja tcheca não viaja bem. Embora os cervejeiros tentem fazer o melhor para replicar a autêntica cerveja tcheca, essa dura realidade desmascara a grande crença da globalização: de que no mundo desenvolvido a gente pode ter o que quiser, quando quiser. >
Portanto, para experimentar a cerveja tcheca como ela realmente foi feita, você tem que ir para a República Tcheca. >
E é isso que o programa do governo tcheco pretende fazer: inspirar uma curiosidade mais profunda nos amantes de cerveja sobre como é provar a cerveja tcheca na própria República Tcheca. >
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