Publicado em 17 de novembro de 2025 às 05:23
O sol a pino do meio-dia de Belém acompanhava todos dias o caminho da mãe de João Victor da Silva, Lene. Da ilha de Caratateua, onde morava, até o centro da cidade, onde trabalhava numa farmácia, eram quase duas horas de raios de sol e calor. Lene sentia literalmente na pele.>
Primeiro, apareceu um sinal, mas ela não teve tempo de cuidar. Depois, o sinal começou a sangrar e foi preciso fazer um exame. O resultado mostraria ser um câncer de pele, já espalhado pelo corpo da paraense.>
João, hoje um adolescente de 16 anos, não lembra nem da voz da mãe, mas conta a história dela para explicar como ele virou "João do Clima", e uma presença garantida em eventos que discutem as mudanças climáticas em Belém, inclusive a COP30, que se encerra nesta semana.>
"Eu digo que ela faleceu diante das desigualdades sociais e das mudanças climáticas", conta João.>
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"Para mim, o câncer de pele dela está relacionado a algo maior.">
Em Belém, a chamada "desigualdade climática", que é como o clima afeta diferentes grupos sociais de maneiras distintas, pode ser sentida a uma esquina de distância. >
A cidade, no meio da floresta, é a sexta capital do Brasil com mais pessoas vivendo em ruas sem uma única árvore, segundo dados do Censo de 2022 do IBGE.>
É uma afirmação que pode soar absurda para quem circula nas áreas centrais e ricas da capital paraense, com seus túneis de mangueiras e de calçadas sombreadas. >
No bairro do Jurunas, vizinho a regiões extremamente arborizadas de Belém, Ronald Monteiro, de 15 anos, conta que o calor a partir das 11h30 vem chegando como "uma máquina de bater açaí". >
"É rápido, meio que fica girando, girando, na gente.">
Quando chega da escola, no fim da manhã, Ronald costuma ajudar o pai no negócio de extração da polpa de açaí, alimento básico dos almoços paraenses, numa rua sem árvores.>
Depois, ele sobe para o quarto e tenta descansar para as atividades da tarde e noite, como futebol, igreja ou ajudar o tio no mercado do bairro. Mas isso não tem sido possível.>
"É um calor insuportável, não tem como dormir, não tem como descansar, a gente perde o sono da tarde. O calor te degrada muito", conta Ronald.>
A sensação dele é mostrada nos números. >
Dados do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) apontam que Belém foi a capital brasileira com mais dias de eventos de "extremos de calor" no ano passado: 212 dias. >
A expressão indica o número de dias no ano em que a cidade teve uma temperatura máxima acima da máxima registrada nos anos anteriores. A capital chegou a registrar 37,3°C. A única cidade com mais eventos extremos que Belém foi Melgaço, na ilha do Marajó, também no Pará.>
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Um levantamento compartilhado com a BBC News Brasil pelo professor Everaldo de Souza, do Laboratório de Modelagem de Tempo e Clima da Universidade Federal do Pará (UFPA), com base em dados no Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), também traz um sinal vermelho para a cidade.>
A capital do Pará já teve nesta década, até o ano passado, 164 dias que registraram uma temperatura máxima acima dos 35,5ºC, o que o professor classifica como um evento de calor extremo. Isso quer dizer que, em quatro anos, Belém teve mais dias de calor extremo do que as últimas seis décadas anteriores somadas.>
"A gente sabe que Belém é quente, mas está muito mais quente", diz Souza.>
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"A Amazônia é um bioma que tem sido modificado, transformando, e isso é um problema [para Belém], porque uma floresta intacta mantém o equilíbrio, o conforto", completa o professor.>
Belém viu a cobertura vegetal em seu território cair drasticamente, segundo o estudo da UFPA. Entre 1985 e 2023, a perda de área de floresta foi de aproximadamente 20%.>
"Se você altera isso, o primeiro efeito é na temperatura", avalia o professor.>
"E numa cidade que tem muitas atividades à tarde, é preciso cautela, especialmente para mais jovens e mais velhos." >
É essa realidade que tanto João como Ronald relatam. Eles conversaram com a BBC para falar de clima e futuro e como a crise atual já afeta suas vidas.>
Na caminhada para a escola, em São João do Outeiro, João Victor "do Clima" e a prima não escolhem mais ir pelas ruas principais. Em vez do asfalto, eles preferem ir num caminho de terra, mesmo que se ande mais.>
"A gente percebeu que nessas ruas sem asfalto é mais fresco. A terra resfria o ambiente", conta.>
Na frente de casa, João também percebeu que a rua e a praça tomadas de lixo ameaçavam a natureza não só ali. O chorume descia para uma nascente de água, que já nascia poluída antes de seguir seu rumo. >
O adolescente organizou protesto, chamou a imprensa, fez mutirão de limpeza e plantou vigília noturna para as pessoas não deixarem mais lixo ali. >
A população se reeducou, e o espaço é agora uma área verde com brinquedos e gramado. A nascente, hoje limpa, é ponto de parada de jovens buscando um banho para se refrescar. Diz-se no bairro que a água é boa até para amaciar os cabelos.>
Foi percebendo situações como essas no dia a dia que João decidiu se tornar uma voz na defesa de políticas ambientais que levem em conta a periferia e as ilhas de Belém. >
"Eu comecei a pesquisar e percebo que tudo está interligado, né? A educação ambiental, a conscientização ambiental e a falta disso que gera uma grande crise, que é a crise climática", diz João.>
"Eu digo que a gente está na mesma tempestade em barcos diferentes. Tem gente em iate, tem gente em rabeta [pequeno barco com motor popular na Amazônia] e tem gente até sem barco.">
João compara a situação de um estudante em escolas privadas de Belém, em áreas arborizadas e com ar-condicionado, com a de alunos de seu bairro. Até os 15 anos, ele estudou numa escola municipal sem climatização. >
Esse ambiente quente, diz, afeta os estudos, o físico e o psicológico dos colegas, a "geração mais afetada com o aquecimento do planeta".>
O meteorologista Everaldo de Souza, da UFPA, explica que crianças e adolescentes estão entre os mais afetados numa Belém mais quente. >
"A hora da entrada e da saída da escola é o pico do calor, sem falar de atividades esportivas e recreação à tarde", conta. >
Participante da COP30 como conselheiro jovem do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), João encabeça ideias que passam pela juventude amazônica. >
No caso do calor do asfalto na rua, por exemplo, João defende projetos que levem em conta o uso de "pavimentação ecológica" - pequenos blocos de concreto com um espaço mínimo entre um e outro na aplicação para permitir infiltração da água e uma melhor sensação térmica.>
Também faz campanha por projetos de educação ambiental e de plantio de árvores na periferia.>
Orgulhoso do que tem feito na praça ou nos debates em Belém, João também lamenta sua vida.>
Ele conta que a agenda de congressos, eventos e entrevistas tem deixado pouco espaço para viver uma vida de "adolescente". Quase não sai mais com jovens de sua idade.>
"Eu queria ser mais adolescente e menos ativista", diz.>
"Mas nesse momento acho que não é possível, porque a gente vive um momento muito complicado, em que os tomadores de decisões e os líderes mundiais estão negligenciando a juventude.">
Belenense, Ronald, de 15 anos, gosta de futebol, do Clube do Remo, de redes sociais, iPhones e também de açaí. >
Por ele, toda refeição teria o creme roxo da fruta - que ele mesmo extrai junto ao pai, Jessé, no comércio em frente à casa da família, no bairro do Jurunas. >
O adolescente conta em detalhes o processo inteiro até o açaí chegar no prato, por experiência própria. >
Nas férias, Ronald costuma viajar até a casa de parentes em área ribeirinha da Grande Belém para ajudar o tio subindo no açaizeiro e colhendo os frutos.>
Mas ele tem estranhado o que tem encontrado.>
"A palmeira era mais forte, e o cacho vinha maior", lembra.>
"E o açaí que chega agora é de menos qualidade, o caroço mais ressecado.">
Neste ano, assim como em muitos comércios em Belém, menos açaí saiu da máquina da família - e menos famílias puderam comprar.>
A capital do Pará viveu uma "crise do açaí" em 2025, com preços recordes no valor da fruta. Em outubro deste ano, nas feiras de Belém, a média de preço do litro do açaí médio era R$ 28, segundo dados do Dieese/Pará. No mesmo mês do ano passado, era R$ 18,40.>
O aumento do valor, que fez moradores pedirem açaí misturado com água para render mais, é uma soma de fatores, segundo pesquisadores.>
As mudanças aceleradas do clima alteraram as condições necessárias para que o açaizeiro frutifique. >
Segundo dados compilados pelo professor Everaldo de Souza, na região de Belém tem chovido mais. Mas essas chuvas têm cada vez mais se concentrado em poucas horas e em poucos dias.>
"Toda a vegetação tem um ciclo, então tem que chover ali certinho para poder florescer o fruto. O que pode estar ocorrendo é que esteja chovendo mais, mas numa época não adequada para a árvore de açaí", conta.>
A alta do preço do açaí também tem ocorrido justamente em um momento em que a fruta é consumida cada vez mais no exterior. Alguns produtores, que antes abasteciam o mercado local, passaram a vender para fora.>
Na casa de Ronald, na periferia de Belém, as vendas neste ano diminuíram e orçamento da família apertou. Nos dias em que o pai não abriu o comércio, ele ajudava o tio no mercado da família.>
"Eu queria mesmo trazer alguma coisa para dentro de casa", diz.>
Ronald planeja para o futuro ser goleiro e herdar o negócio do pai. Mas os planos diários de adolescente têm sido alterados em meio ao calor de Belém.>
Como não consegue descansar em casa à tarde, diante do calor, o adolescente se diz "muito cansado".>
"Eu até tomo banho e tento dormir, mas não dá. No calor, meu corpo fica mais fraco." Ele diz que o desempenho nas atividades fica prejudicado.>
O meteorologista Everaldo de Souza avalia que o problema do sono em bairros periféricos mais quentes em cidades como Belém é algo que ainda precisa ser estudado. Mas ele avalia que esse já é um dos desafios latentes na cidade.>
"Na hora do sono profundo, a gente precisa diminuir a temperatura do corpo. Se o ambiente está muito mais quente, isso tem impacto no nosso sono. Várias noites mal dormidas vão ter efeito a longo prazo", diz o pesquisador.>
Ronald sabe que provavelmente os delegados da COP30, reunidos a 9 quilômetros de sua casa, no Parque da Cidade, não passarão pelo Jurunas para sentir o "calor anormal" que ele sente.>
Mas ele espera que jovens belenenses como ele sejam ouvidos.>
"Dizem que a gente é o futuro do Brasil, então temos que ser ouvidos", diz.>
"Tenho esperança que melhore bastante.">
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