Publicado em 30 de outubro de 2025 às 09:33
"O Senhor, Deus dos hebreus, me enviou para dizer-te: deixa ir o meu povo, para que me sirva no deserto.">
O pedido de Moisés ao faraó Ramsés (Êxodo 7:16) foi o primeiro impulso para que o governante egípcio libertasse os israelitas escravizados e permitisse que eles seguissem para a terra prometida.>
Os eventos sobrenaturais, como as 10 pragas do Egito e a travessia do Mar Vermelho, transformaram esta história em uma das mais conhecidas da Bíblia, muito antes que Hollywood a levasse para a tela grande, no filme Os Dez Mandamentos (1956).>
Mas, entre o final do século 18 e o início do século 19, foi publicada uma versão do texto sagrado que não incluía o relato da libertação do "povo escolhido por Deus", narrado no Êxodo, além de outros trechos que condenam a escravidão e a opressão das pessoas.>
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"Partes selecionadas da Santa Bíblia, para uso dos escravos negros, nas Ilhas das Índias Ocidentais Britânicas" era o título oficial do livro publicado em Londres, no ano de 1807.>
Mas, com o passar do tempo, os historiadores rebatizaram o texto como a "Bíblia dos escravos".>
Esta versão foi editada pela chamada Sociedade para a Conversão dos Escravos Negros, uma organização de missionários da Igreja Anglicana (a Igreja da Inglaterra), dedicada a evangelizar as pessoas trazidas da África e escravizadas para trabalhar nas plantações das colônias britânicas do Caribe e, possivelmente, também da América do Norte.>
Mas tudo sem questionar o sistema escravagista.>
"Esta versão da Bíblia é um texto extensamente editado, com o propósito de manter o controle dos escravizados", declarou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) o teólogo britânico Robert Beckford.>
"É um texto que suprimiu cerca de 90% do Antigo Testamento e 60% do Novo Testamento", explica ele.>
Beckford é professor de Justiça Racial da The Queen's Foundation de Birmingham, no Reino Unido, um centro encarregado da formação das novas religiosas e religiosos anglicanos.>
"Toda a história de Moisés e da libertação dos israelitas do Egito foi eliminada , bem como todas as passagens que abordavam a liberdade ou a libertação humana. Um exemplo foi a exclusão da carta em que o apóstolo Paulo diz: 'Não pode haver [...] escravo nem liberto; porque todos vós sois um em Cristo Jesus' [Gálatas 3:28].">
Em termos similares se pronunciou Anthony Schmidt, diretor de Coleções do Museu da Bíblia de Washington, nos Estados Unidos.>
O museu exibiu, em 2017, um dos poucos exemplares da "Bíblia dos escravos" que sobreviveram até os nossos dias.>
"Era uma Bíblia abreviada, que teve grandes partes eliminadas e era dirigida a um público específico", segundo Schmidt, que também é especialista em religião da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.>
Schmidt declarou que esta prática foi comum ao longo da história.>
"Temos outras bíblias abreviadas, que foram editadas para que fossem mais digeríveis para certos públicos", ele conta. "Temos, por exemplo, algumas destinadas a crianças, que tiveram os textos substituídos por ilustrações.">
Mas o estudioso reconhece que este caso é diferente.>
"Os responsáveis pela edição tinham a intenção de manipular as pessoas escravizadas, possivelmente por acreditarem que histórias como a de Moisés causam tanto impacto que poderiam levar a uma rebelião", explica Schmidt. >
Ele também afirma que os responsáveis por esta versão não revisaram a Bíblia linha por linha, para definir quais textos ficariam e quais seriam excluídos.>
"Eles não eliminaram palavras ou frases, mas sim passagens e livros inteiros que não consideravam essenciais", prossegue Schmidt. "Eles retiraram, por exemplo, a maior parte do livro do Êxodo, mas mantiveram as referências a Moisés que aparecem em outros textos bíblicos.">
Uma edição típica da Bíblia protestante contém 66 livros. A versão católica inclui 73 e uma tradução ortodoxa oriental é composta por 78 livros.>
Mas a "Bíblia dos escravos" contém apenas cerca de 14 livros, segundo o Museu da Bíblia de Washington.>
Para Beckford, o momento histórico em que surgiu a "Bíblia dos escravos" é outra prova de que seu propósito era garantir o controle da população escravizada nas colônias britânicas.>
"Ela foi publicada em 1807 e, em março daquele ano, o Parlamento britânico proibiu o comércio de pessoas escravizadas no Império", destaca o teólogo. "Mas a escravidão, como sistema, foi mantida por mais 30 anos.">
"Como manter os escravizados nas plantações?", questiona ele. "Além da violência, que era parte integrante da escravidão, era necessário um marco ideológico.">
"E, até surgir a pseudociência que apoiava a supremacia branca, a Bíblia foi fundamental, pois promovia a ideia de que Deus apoiava a escravidão.">
"Servos, obedecei a vossos senhores com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a Cristo" (Efésios 6:5). Esta passagem da carta do apóstolo Paulo aos Efésios é um dos textos favoráveis à escravidão que podem ser encontrados naquela versão.>
"A ideia era corromper a Bíblia para que ela servisse ao terror racial, sugerindo aos africanos escravizados que Deus apoiava sua situação infra-humana", explica Beckford.>
Já Schmidt também acredita que esta versão da Bíblia tenha sido reflexo do contexto da época.>
"Ao longo do século 18, alguns cristãos se preocuparam com o bem-estar espiritual das pessoas trazidas da África", prossegue ele, "mas os donos das plantações se opunham à sua evangelização, pois receavam que fosse uma ameaça para sua autoridade.">
"Para vencer a oposição dos senhores de terras, os missionários anglicanos defendiam que converter os escravizados ao Cristianismo os tornaria melhores, pois ensinaria a eles a obediência", destaca o diretor de Coleções do Museu da Bíblia de Washington.>
A participação da Igreja da Inglaterra na escravidão foi historicamente comprovada.>
Uma de suas organizações, a Sociedade para a Propagação do Evangelho no Exterior, por exemplo, chegou a atuar na plantação de Codrington, em Barbados. Nela, trabalharam centenas de africanos escravizados, segundo Beckford.>
Em 2023, após uma investigação interna, o então arcebispo da Cantuária e hierarca máximo da Igreja Anglicana, Justin Welby, admitiu as relações da instituição com o tráfico de pessoas da África.>
Entre as "ações para enfrentar este vergonhoso passado", Welby anunciou a doação de US$ 135 milhões (cerca de R$ 737 milhões) para financiar projetos em comunidades "historicamente prejudicadas" pela escravidão.>
Mas Schmidt acredita que o fato de que a "Bíblia dos escravos" tenha sido editada por uma organização ligada ao bispo Beilby Porteus (1731-1809), um dos primeiros líderes anglicanos a condenar publicamente a escravidão, revela que a instituição procurava reformar e até eliminar esta prática.>
"Os missionários tinham visão progressista", segundo o especialista. "Eles queriam melhorar as condições de vida dos escravizados, reduzir sua carga de trabalho, oferecer assistência médica e proibir que suas famílias fossem separadas.">
Mas ele reconheceu que não existem registros de que os religiosos tenham defendido a eliminação imediata da escravidão.>
"Acredito que seu objetivo fosse que ela ocorresse gradualmente, em uma ou duas gerações", explica Schmidt.>
Beckford mantém opinião similar. Ele indica que a Igreja Anglicana da época defendia a chamada "escravidão cristã".>
"A escravidão cristã foi uma tentativa de manter o sistema escravagista, fazer com que os africanos escravizados fossem melhores e, com o tempo, reformar o sistema e eliminá-lo", resume o professor.>
Em relação ao impacto causado por aquela Bíblia, os estudiosos consultados reconhecem que as evidências documentais existentes comprovam apenas o uso do controvertido texto nas plantações de cana-de-açúcar nas colônias britânicas do Caribe.>
Mas tanto Beckford como Schmidt admitem ser grande a possibilidade de que ela também tenha sido empregada nas fazendas de algodão localizadas no que hoje constitui o sul dos Estados Unidos.>
Teria a Igreja Católica também tido uma "Bíblia dos escravos"?>
A resposta é "não", segundo o professor de História da Igreja Jesús Folgado, das Universidades Comillas e San Damaso, na Espanha.>
"Os textos bíblicos suprimidos pela Igreja Anglicana para bendizer a escravidão foram os mesmos que diversos papas e líderes de diferentes congregações religiosas na Europa utilizaram para condená-la", acrescenta o professor, que também é sacerdote e doutor em Teologia.>
Em 1537, o papa Paulo 3° (1468-1549) publicou a bula Sublimis Deus. Nela, ele declarou:>
"Todos os homens, de todas as raças, deverão gozar de liberdade e ser senhores de si próprios, não sendo permitido a ninguém reduzi-los à escravidão.">
Anos depois, o papa Urbano 8° (1568-1644) ameaçou de excomunhão todos os católicos que escravizassem outra pessoa.>
Mas esta postura da alta hierarquia da Igreja Católica não impediu que a escravidão fosse praticada nas colônias espanholas, portuguesas e francesas do continente americano — incluindo pela própria instituição religiosa.>
"De fato, houve a contradição entre os papas que condenaram a escravidão e muitas congregações na América que mantiveram pessoas escravizadas", segundo Jesús Folgado.>
"Mas a escravidão na América hispânica não podia ser comparada com a da América e do Caribe de fala inglesa", afirma ele. Por quê?>
"As congregações religiosas tiveram pessoas escravizadas", prossegue o teólogo, "mas suas condições eram similares à dos trabalhadores de Castela [hoje, parte da Espanha] naquela época: eles tinham dias de folga e podiam sair e se casar, embora não fossem totalmente livres.">
Atualmente, temos poucas cópias desta controvertida versão do texto sagrado. Uma delas está na biblioteca da Universidade Fisk em Nashville, no Estado americano do Tennessee, e outras duas, nas Universidades de Oxford e Glasgow, no Reino Unido.>
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