"Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia”. Liev Tolstoi, escritor russo autor da famosa frase, certamente não conheceu o Morro da Piedade, em Vitória. Mas, ainda assim, ele traduz à perfeição a trajetória de vida do professor, sambista e produtor cultural Jocelino da Conceição Júnior, eleito um capixaba de valor na categoria “Impacto Social”.
“Na minha infância, nos anos 1990, o senso de comunidade nos bairros era muito intenso, as festas eram coletivas, tudo era muito coletivo na Piedade. Nas partes altas do Centro de Vitória existem algumas fontes, alguns olhos d’água e meu avô, seu Bento, tinha uma dessas no seu quintal, de onde ele fornecia água para muita gente no morro poder beber. Hoje, eu vejo que isso é uma tecnologia ancestral. Acho que aí eu comecei a entender o que é aquilombamento: quando eu vejo que eu posso fomentar o coletivo naquele território”, conta.
Foi com vivências como essa que a infância de Jocelino transcorreu. As dificuldades comuns a toda família que depende de salário mínimo, somadas às experiências que ele vivenciou de forma natural no Morro da Piedade, foram as sementes que resultaram no Instituto Raízes, uma organização sem fins lucrativos que busca superar a violação de direitos, na Piedade e em outras comunidades, por meio da cultura.
“O Instituto Raízes, desde 2008, pensa na proteção social. Eu percebi o samba como um ponto de integração em que seria possível incluir crianças e jovens. E, a partir daí, o Raízes se torna um ponto de promoção de cultura e de direitos humanos. Por meio do Raízes, a gente se insere em posições de afirmar ideias e posicionamentos da nossa população”, sintetiza.
Para Jocelino, é impossível dissociar suas vivências como um homem negro periférico dos papéis que ele desenvolve hoje no Instituto Raízes, como professor da rede pública de ensino, presidente da escola de samba Unidos da Piedade e da sua atuação no Museu Capixaba do Negro (Mucane). Para ele, é tempo de buscar mais investimentos para a emancipação da população negra e promoção de oportunidades.
“Eu sou filho de uma empregada doméstica e de um gari. Receber um prêmio como o ‘Capixaba de Valor’ me engrandece demais, porque é importante ver nosso trabalho ser reconhecido, mas o que a gente busca é transformar realidades. Eu percebi a importância da formação, da educação. Se eu não tivesse estudado, talvez eu não estivesse recebendo este prêmio. Precisamos de mais chances de romper as barreiras, visíveis e invisíveis, para que possamos mostrar caminhos possíveis para as pessoas”, acredita.
E Jocelino viveu essas questões na pele. A sua maior conexão com movimentos sociais começou justamente no período em que ele ingressou na faculdade de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), momento em que ele mesmo questionou a possibilidade de ocupar aquele espaço.
“No meu primeiro dia de aula, eu não tinha grana para a passagem de ônibus. Eu comecei a me perguntar se eu ia dar conta, se aquilo era para mim. Aí eu comecei a entender a importância de um programa de cotas e do suporte ao estudante, especialmente para aquele que estuda e trabalha, como era o meu caso”, avalia.
“E tem um ponto que é muito falado com quem vem de espaços periféricos e ingressa na universidade: dar retorno à sociedade. Nesse cenário, a ideia que eu tive foi a de mobilizar as pessoas para construção de uma sociedade mais justa a partir do território em que eu vivia, o Morro da Piedade. Eu nasci da necessidade de transformação social e eu não tive escolha: eu não podia optar por não ser atuante no território em que eu vivi”, pondera.
Ao olhar para o futuro, Jocelino aponta que uma questão é central para a população negra: o enfrentamento ao racismo como uma prioridade social, mas também política, para que a população negra tenha mais chances de alcançar oportunidades transformadoras.
“Se não há um enfrentamento político de toda a sociedade ao racismo, o enfrentamento feito apenas pelos movimentos negros perde força. O racismo mata, constrói maior desigualdade, e é um contexto que tem de ser enfrentado de forma coletiva, por todos os setores. Discussões políticas que não oferecem alternativas, que não oferecem possibilidades às pessoas, acabam apenas aumentando a desigualdade. E o resultado disso: pessoas negras sem trabalho, territórios empobrecidos e sem direitos básicos”, conclui
Jocelino da Conceição Júnior é produtor cultural, sambista, presidente da escola de samba Unidos da Piedade, professor e coordenador do Museu Capixaba do Negro (Mucane).
Nasceu em 18 de fevereiro de 1991, no Morro da Piedade, em Vitória, onde cresceu.
Desde 2008 atua junto ao Instituo Raízes, organização que busca superar a violência por meio de ações voltadas à cultura.
Formou-se em Pedagogia, pela Ufes, em 2015. Na mesma instituição, cursou o mestrado em Educação, concluído em 2021.
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