Publicado em 19 de abril de 2023 às 16:24
Nos últimos meses, uma "canetinha" com agulha na ponta virou uma febre entre as pessoas que desejam emagrecer. Em postagens de redes sociais, celebridades e influenciadores digitais do Brasil e do mundo passaram a divulgar o Ozempic, remédio desenvolvido pela farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk.>
A princípio, a semaglutida — o nome científico da molécula — foi estudada e aprovada como um tratamento contra o diabetes. Mas logo os cientistas começaram a observar um "efeito colateral" muito interessante dela: a perda de peso.>
Foi assim que o Ozempic começou a ter o chamado uso off-label (fora das recomendações de bula) alardeado por algumas pessoas como uma forma de eliminar os quilos extras. >
Mais recentemente, surgiram as versões do medicamento específicas para o tratamento da obesidade — elas foram aprovadas no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro e devem chegar às farmácias do país a partir do segundo semestre deste ano.>
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Mas, afinal, para quem a semaglutida está realmente indicada? E quem mais se beneficia dessa e de outras terapias farmacológicas contra o excesso de peso? >
Segundo médicos ouvidos pela BBC News Brasil, esse remédio simboliza o início de uma "era de ouro" no tratamento da obesidade — mas o uso indiscriminado dele para fins estéticos, sem orientação médica, preocupa.>
A BBC News Brasil entrou em contato com a farmacêutica Novo Nordisk, responsável por liraglutida e semaglutida, que enviou uma nota de esclarecimentos sobre várias questões relacionadas ao uso desses medicamentos.>
No texto, o laboratório diz não endossar ou apoiar "a promoção de informações de caráter off-label de seus medicamentos, ou seja, em desacordo com a bula". "O Ozempic, aprovado e comercializado no Brasil para o tratamento do diabetes tipo 2, não possui indicação aprovada pelas agências regulatórias nacionais e internacionais para o tratamento de obesidade", afirma.>
"Com o intuito de evitar risco à saúde com a utilização de medicamentos ineficazes ou inapropriados, a Novo Nordisk recomenda que os pacientes adquiram os produtos em locais oficiais, atentando para as apresentações aprovadas pela Anvisa e o preço ofertado, regulado pelo Governo Federal", esclarece a nota.>
Sobre os episódios de falta do medicamento, a Novo Nordisk diz que não é possível rastrear a finalidade de uso da semaglutida comprada nas farmácias, mas entende e lamenta "a preocupação e possíveis transtornos que essa indisponibilidade temporária poderá causar em pacientes com diabetes 2, seus familiares e cuidadores". >
"Encaramos a situação de maneira extremamente séria e estamos trabalhando incansavelmente para superarmos esses desafios temporários", conclui o texto.>
A confusão relacionada a essa medicação começa pelo nome. Como dito anteriormente, a alcunha científica dela é semaglutida, a qual usaremos como padrão ao longo desta reportagem.>
Mas os nomes com que ela é vendida nas farmácias variam segundo o objetivo terapêutico e a dosagem. O tratamento já aprovado há algum tempo contra o diabetes tipo 2 é o Ozempic. Ele é injetável e tem 1 miligrama (mg). >
Uma segunda opção contra o diabetes é o Rybelsus, que vem na forma de comprimidos de 3,7 ou 14 mg. Por fim, o medicamento específico contra a obesidade é chamado de Wegovy. Ele é injetável e traz 2,4 mg.>
Ou seja: falamos de três produtos distintos, cuja semelhança é o fato de terem a semaglutida como princípio ativo. >
Mas como essa molécula é capaz de reduzir o peso de uma pessoa? A médica Simone Van de Sande Lee, diretora do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), diz que ele produz três efeitos no organismo.>
Isso porque a semaglutida "imita" a ação de um hormônio fabricado no intestino: o GLP-1. >
"E isso gera um sinal de saciedade ao resto do organismo, o que faz o indivíduo ter uma ingestão menor durante as refeições", complementa a endocrinologista, que também é professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O resultado prático disso é justamente o emagrecimento.>
Outro efeito da semaglutida é o de estimular a liberação de insulina pelo pâncreas. Esse hormônio é responsável por retirar da circulação sanguínea o açúcar obtido dos alimentos e colocá-lo dentro das células, onde será usado como fonte de energia.>
Por fim, o fármaco também retarda o esvaziamento do estômago — como a comida fica nesse órgão por um tempo maior, a sensação de barriga cheia acaba se prolongando.>
Como explicado mais acima, a semaglutida para tratamento da obesidade é injetável (ela vem numa espécie de caneta, com uma agulha fina na ponta), e deve ser aplicada uma vez por semana.>
Nos estudos que serviram de base para a aprovação do medicamento, a perda de peso média entre os voluntários foi de 17% — porcentagem que supera o obtido com outras opções farmacológicas disponíveis. >
"As medicações que tínhamos até então chegavam, no máximo, a 10%", estima o endocrinologista Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (Abeso).>
"Além disso, a semaglutida é bastante segura, com poucos efeitos colaterais conhecidos", acrescenta.>
Pelo que foi descrito até agora, os eventos adversos da terapia são classificados como transitórios, leves ou moderados, e acometem principalmente o sistema digestivo: os pacientes podem experimentar sensações de náuseas e enjoos, além de quadros de diarreia ou constipação. >
Nas pesquisas, também foram observados poucos casos de pedras na vesícula e pancreatite — embora os números não tenham sido suficientemente grandes para alcançar uma relevância estatística.>
Para saber quem mais se beneficiaria do tratamento com a semaglutida, é preciso antes conhecer uma das medidas mais utilizadas para diagnosticar quadros de sobrepeso ou obesidade: o Índice de Massa Corporal, ou IMC.>
Para chegar a esse número, basta dividir o peso de um indivíduo pela altura dele elevada ao quadrado. O número obtido a partir dessa operação matemática se encaixa em uma das categorias a seguir:>
Vale dizer que o IMC é apenas uma medida de referência, e nem sempre ele reflete de modo absoluto a saúde de uma pessoa ou as condições particulares de cada um — um atleta de alto rendimento muito forte, por exemplo, pode ter números que ficam acima do "peso normal", mas mesmo assim ele não tem sobrepeso ou obesidade. >
Em bula, a semaglutida está indicada para todos os indivíduos com obesidade (ou seja, com o IMC acima de 30). >
Ela também pode ser considerada como uma opção para pacientes com sobrepeso cujo IMC supera os 27 e há a presença de alguma comorbidade (ou doença associada), como hipertensão, colesterol alto, diabetes, apneia do sono…>
Em ambos os casos, a aplicação dela deve estar sempre associada com as mudanças no estilo de vida, que incluem dieta e atividade física regular.>
"Historicamente, o tratamento da obesidade é cheio de decepções", lembra Halpern. No passado, foram aprovadas medicações que até funcionavam, mas traziam eventos adversos graves e potencialmente fatais.>
Antes da chegada da semaglutida, os remédios disponíveis para regular o peso corporal eram poucos: a sibutramina, o orlistate, a liraglutida e alguns antidepressivos.>
"Falamos de opções que são razoavelmente eficazes, com uma perda de peso que varia entre 5 e 10%", estima o endocrinologista.>
"Porém, na maioria das vezes, os pacientes precisam eliminar mais do que isso", complementa.>
"O avanço no conhecimento científico e o desenvolvimento de novos tratamentos permitem a gente viver essa era de ouro no tratamento da obesidade", classifica o cirurgião Ricardo Cohen, do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.>
Segundo Cohen, a disponibilidade de tantas opções permite escolher melhor o tratamento para cada paciente, segundo as necessidades dele.>
"Na próxima década, vamos conseguir individualizar cada vez mais os cuidados. Com o avanço da genética, inclusive, saberemos de antemão se uma pessoa com obesidade vai se beneficiar mais de um medicamento ou da cirurgia bariátrica", antevê o médico.>
Nesse contexto, os remédios mais antigos continuarão a ter valor. Isso porque nem todo mundo responde bem à semaglutida.>
De acordo com os especialistas, os antidepressivos também seguirão valiosos para os casos em que o ato de comer envolve compulsões e questões emocionais.>
Cohen ainda aponta que a cirurgia bariátrica seguirá como uma alternativa importante, especialmente para os casos mais graves (quando o IMC supera os 35 ou os 40) ou para os indivíduos que não respondem às medicações.>
O endocrinologista Walmir Coutinho, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), observa que tantos avanços científicos modificaram até a ordem de prioridade dos tratamentos contra a obesidade.>
Tradicionalmente, as sociedades médicas costumavam prescrever mudanças na dieta e prática de exercícios físicos como a primeira linha terapêutica para lidar com o excesso de peso. Só quando essas estratégias falhavam é que remédios ou procedimentos cirúrgicos entravam em cena.>
Mas isso começou a ser questionado com mais força em meados de 2020, com a publicação das Diretrizes de Tratamento de Obesidade do Canadá. >
Coutinho destaca que, pela primeira vez, um documento desse porte reconheceu que intervenções psicológicas, medicações e cirurgia bariátrica formam os três pilares terapêuticos básicos — e modificações na alimentação e estímulo à atividade física atuam como forças complementares para a perda de peso.>
"A ciência já comprovou que dieta e exercício físico até funcionam bem no curto e no médio prazo, mas perdem a eficácia com o passar do tempo", cita Coutinho, que também é ex-presidente da Federação Mundial de Obesidade.>
Para justificar isso, o endocrinologista cita os resultados de um estudo chamado Action IO, que aconteceu em 11 países e foi publicado em 2019. >
Na pesquisa, a meta era perder até 10% de peso em três anos com mudanças no estilo de vida. Ao final do experimento, 84% dos participantes não conseguiram, 11% até enxugaram as medidas, mas recuperaram depois, e apenas 5% atingiram o objetivo estabelecido.>
"Já sabemos, com um alto grau de segurança, que dieta e exercício não são a solução definitiva para o tratamento da obesidade. Falamos de uma doença crônica que, assim como o diabetes, o colesterol alto e a hipertensão, na maioria das vezes vai precisar sim de medicamentos", defende Coutinho.>
Embora entrar com os remédios logo de cara ainda não seja um consenso no Brasil, Halpern aponta que muitas vezes eles são prescritos porque o indivíduo com obesidade costuma passar por uma verdadeira jornada antes de buscar um médico.>
"Em primeiro lugar, precisamos deixar claro que mudanças no estilo de vida devem sempre estar presentes", esclarece o médico.>
"Mas algumas estimativas apontam que o paciente demora cerca seis anos para consultar um especialista. Com isso, muitas vezes já é preciso iniciar com a medicação", complementa.>
Porém, apesar de todos os benefícios observados nos últimos anos, as terapias medicamentosas contra o excesso de peso esbarram em pelo menos três grandes obstáculos para deslanchar, como você confere a seguir.>
"Infelizmente, a obesidade segue cercada de estigmas", lamenta Cohen.>
"Para muitos, esse problema ainda é visto como uma falha de caráter ou falta de vontade, como se a pessoa só não emagrecesse porque não se esforça ou não quer", observa o cirurgião.>
"Não se pode jogar a culpa da obesidade nos pacientes. Falamos de uma doença crônica progressiva que necessita de intervenção, como qualquer outra enfermidade", afirma ele.>
Ou seja: pelo que se sabe hoje em dia, a obesidade não é apenas uma questão de comer demais ou gastar poucas calorias. Trata-se de uma disfunção metabólica muito complexa, sobre a qual há uma influência de fatores genéticos e de estilo de vida.>
Essa noção distorcida sobre o que é obesidade e o que pode ser feito para combatê-la constitui, portanto, a primeira barreira na busca de uma solução para o problema. >
Coutinho estima que, nos Estados Unidos, apenas 0,8% dos indivíduos que poderiam se beneficiar dos remédios estão fazendo o tratamento — no Brasil, um estudo antigo calculou que 3,3% dos pacientes com obesidade usavam a sibutramina.>
"Temos então cerca de 97% da população que sofre de uma doença grave e mortal que simplesmente não toma nenhum medicamento", calcula.>
O endocrinologista destaca que, segundo organizações internacionais e levantamentos recentes, todos os anos são registradas 4 milhões de mortes associadas ao sobrepeso e à obesidade.>
E a tendência é que esses números só cresçam no futuro. "No Brasil, 55% da população está acima do peso, número que deve subir para 88% até 2060", projeta Coutinho.>
"Em 2020, a obesidade custou R$ 190,5 bilhões ao país. Esse valor vai saltar para R$ 1,3 trilhão em quatro décadas", complementa.>
A segunda barreira citada pelos especialistas é justamente a banalização dos remédios mais novos, principalmente da semaglutida.>
Como citado no início da reportagem, ela virou uma moda nas redes sociais — e muita gente passou a utilizá-la por conta própria.>
"Esse medicamento tem a tarja vermelha, o que significa que a venda dele depende de prescrição médica", conta Lee. >
"Mas, como a retenção da receita pela farmácia não é obrigatória, na prática muita gente consegue comprar a semaglutida mesmo sem ter o pedido de um profissional de saúde", aponta a endocrinologista.>
Coutinho lembra que a semaglutida "não é cosmético" e será necessário desenvolver maneiras de inibir esse uso supérfluo.>
"Tomar a medicação com fins estéticos é preocupante, porque isso gera um desbalanço na relação risco-benefício", ressalta.>
Ou seja, a pessoa que toma a injeção sem necessidade terá uma perda mínima, de poucos quilos, e ainda sofrerá com os efeitos colaterais — ainda mais se o uso é feito por conta própria, sem a orientação do médico, que busca justamente aumentar a dosagem aos poucos para observar as reações e lidar com possíveis incômodos.>
"A semaglutida não é uma droga para você perder três quilos e usar uma roupa no casamento de um amigo no final de semana", orienta Cohen.>
Halpern aponta que a forma como o medicamento é retratado na mídia e nas redes sociais contribui para essa noção distorcida.>
"Precisamos entender de uma vez por todas que não estamos falando de remédios para emagrecer. Eles são tratamentos contra uma doença", diferencia.>
O endocrinologista acrescenta que esse uso estético também afeta os pacientes que realmente se beneficiariam do fármaco — nos EUA, por exemplo, foram registrados episódios de falta de doses em farmácias pela alta procura dos últimos meses.>
Para fechar, não dá pra ignorar as discussões sobre o acesso aos remédios antiobesidade.>
Por ora, nenhum deles está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) — existe até um pedido de análise para a inclusão da liraglutida, uma molécula de uso diário que é "prima-irmã" da semaglutida, na rede pública.>
Isso significa que, até o momento, os pacientes precisam pagar por conta própria pelo tratamento — ou, caso tenham convênio, ver a possibilidade de o plano de saúde custear essa compra.>
Ainda não se sabe qual será o preço cobrado pela semaglutida contra a obesidade (o Wegovy) no Brasil. >
Nas farmácias, a versão injetável do medicamento que trata especificamente o diabetes (o Ozempic) sai na casa de R$ 800,00 a R$ 1.100,00 ao mês.>
"Ou seja, falamos de um remédio que ainda é extremamente caro para a maior parte da população brasileira", constata Halpern.>
E isso se torna ainda mais significativo quando consideramos o fato de que o tratamento contra a obesidade é contínuo, sem data para terminar. >
Essa necessidade de seguir a terapia de forma indefinida, aliás, não tem nada de novo. Ela também acontece em outras doenças crônicas muito comuns, como o diabetes e a hipertensão, em que o paciente precisa tomar os remédios na periodicidade indicada para manter a pressão arterial ou o açúcar no sangue sob controle.>
"Esses medicamentos não vão modificar de forma definitiva as alterações que a obesidade provoca no organismo", explica Lee.>
"Na maioria dos casos, a tendência é que a pessoa ganhe peso novamente se o tratamento for interrompido", complementa a endocrinologista.>
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