Rodízio de pizzas no velório: por que não?

Publicado em 29/08/2025 às 06h00
Fatias de pizza

Penso em um rodízio de pizzas e em quantos não apareceriam também para lamentar a morte seja lá de quem fosse . Crédito: smspsy/Shutterstock

No livro “Dona Flor e seus dois maridos”, o autor Jorge Amado carnavaliza com as hierarquias e inicia o romance com o fim de Vadinho, personagem dado a comer os prazeres do mundo.

No primeiro capítulo da obra, a culinarista Dona Flor orienta uma de suas alunas de cozinha sobre o que servir em velório de defunto e dificilmente acreditarei que isso tenha sido por acaso.

O absurdo ganha contornos mais lógicos quando pensamos no óbvio: onde houver gente, precisará, em algum momento, haver comida também.

Para realmente honrar os que esticaram as canelas, Dona Flor recomenda que é preciso cuidar “da moral e do apetite” com um cardápio digno para essa ocasião. “Café é indispensável e o tempo todo", mas cuscuz com ovos e bolo de aipim somente aos que vigiaram o caixão noite adentro.

Para sentinelas com dinheiro a rodo, chocolate quente à meia-noite, canja de galinha e bolinhos de bacalhau. ​​”Champanha” não se considera de bom tom, mas cachacinha sempre, para defuntos ricos ou pobres. “Velório sem cachaça é desconsideração ao falecido”, ressalta Florípedes em uma passagem.

É preciso lembrar que não é todo mundo que nessas horas perde o apetite. Por outro lado, comer em velórios pode ser uma homenagem ou, no mínimo, uma forma acolhedora de vivenciar o início de um luto. Então, por que não escolher um cardápio?

Há anos tenho sido um preguiçoso entusiasta da ideia de empreender em um bufê especializado na situação. Em uma rápida pesquisa de opinião, nenhum amigo compraria essa ideia, mesmo sabendo que, em cantina de cemitério, a gente quase morre de tédio - frequentei poucas vezes somente para comprar água e não falecer de calor.

A morte simboliza diferentes perspectivas de sentidos entre culturas - a depender, inclusive, de sua causa. Mas no junta-pratos brasileiro que naturalmente se inicia também em velórios, há uma oportunidade de se observar uma importante troca de cuidados, que podem ser mobilizados desde o bolo comprado de última hora em uma padaria do caminho às bananas que estavam no cesto de casa ou ao caldo preparado pela tia mais cozinheira.

Fico pensando em um rodízio de pizzas e em quantas pessoas não apareceriam também para lamentar a morte seja lá de quem fosse - afinal, estamos em um planeta onde pessoas ainda morrem, inclusive, de fome.

Pode ser antipático escolher, mas, por favor, não desonrem meu funeral com croquete de azeitona, o salgado mais desrespeitoso de nossas vidas. A pipoca tá liberada inclusive na versão doce e com adicional de leite condensado.

Dona Flor sacou tudo e Jorge Amado registrou uma organização para a comida em momentos difíceis: talvez seja essa a única forma pra gente, um dia, descansar em paz.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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