Escolhi gastronomia como motivo socialmente aceito para usar sapato crocs em lugares públicos e já adianto que a curiosidade talvez seja exclusivamente minha. Recebi um convite para fazer comida em um seminário sobre filosofias indígenas e vivências da modernidade, no último dia 14, no Parque Cultural Casa do Governador, em Vila Velha.
O desafio, para mim, era o de conseguir alimentar algum interesse dos participantes também sobre o que mastigar no coquetel de um evento sob curadoria e reflexões do ambientalista e filósofo indígena Ailton Krenak.
Ailton Krenak . Crédito: Alex Gouvêa
Servir 500 pessoas a céu aberto é uma boa oportunidade para ideias choverem no molhado. Mas em tempos de crise climática, arriscar é viver, e vice-versa. Foi por isso que resolvi me vestir de capixaba para celebrar as origens do próprio adjetivo que caracteriza um povo moldado por panelas de barro.
Em línguas indígenas como a tupi-guarani, o termo “capixaba” representa certo tipo de roçado ou terra limpa para plantação de milho e mandioca. Por muito tempo, esse foi o nome utilizado para se referir a grupos de povos originários que habitavam a cidade questionavelmente nomeada como Vitória.
O termo “capixaba” é hoje empregado para se referir a todos os comedores de moqueca que nasceram, habitam ou pertencem ao território espírito-santense.
De uma gente que nominalmente se define também pelo plantio de milho deveriam pipocar pensamentos sobre sua identidade.
Inspirado em homenagear o senhor Visconde de Sabugosa, decidi transformar o coquetel em uma degustação para servir o cereal de forma pouco consumida entre as mesas capixabas na atualidade. Criei uma receita salgada de um prato chamado muxá.
Muxá salgado. Crédito: Olivier Schochlin
Trata-se de uma espécie de bolo feito com canjiquinha de milho e leite de coco que, em versão doce, é geralmente indicado como sobremesa. Na minha releitura, acrescentei, além de sal, molho de tomates com fibra de caju e servi com creme de castanha e taioba frita. Nenhum ingrediente de origem animal. Ponto para a eco-sustentabilidade e para a tentativa de acessibilidade alimentar.
A verdade é que em pouco mais de três décadas vivendo nesta capitania onde nasci, nunca qualquer conterrâneo chegou a me oferecer muxá em sua casa. Primeiro, porque poucos são os que me cumprimentaram ao longo desse período. Depois, porque estranhamente visitas não são tão desejadas - principalmente se for para comer.
Mas em algum passado simpático de nossa identidade alimentar, indígenas e quilombolas convidavam o muxá para fazer parte de sua tradição.
De vez em quando é necessário que a gente se lembre: antes do colonialismo alimentar, os povos originários desenvolveram marcantes relações com a biodiversidade dessa terra repleta também de palmitos, abacaxis, aroeiras e flores de bougainville.
Enaltecer a origem dos alimentos permite colaborar para o reconhecimento histórico de uma identidade local em meio a culturas que já se esquecem de que o tomate italiano é, na verdade, bastante latino.
Para mim, capixaba tem sangue de urucum. Nesse país cor de brasa e pintado por tantas cores, o vermelho é simbolicamente potente. Estimula o apetite em moquecas e escorre feito alerta entre mortos e feridos, Tupiniquins e Guaranis, Botocudos e Krenaks.
A propósito, meu caro Ailton, sinta-se convidado a me visitar com outras provocações sobre resgatar a essência de nossa identidade. Enquanto precisarmos de ideias para adiar o fim do mundo, eu me comprometo ao menos em abrir as portas do estado e garantir as espigas para o muxá.
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