Nina Horta e o conceito de comida perversa

Publicado em 01/05/2025 às 07h00
Nina Horta

Nina Horta foi a cronista brasileira que melhor soube temperar as palavras . Crédito: Raquel Cunha/Folhapress

Daqueles que ralam a barriga no fogão e transpiram poesia, Nina Horta foi a cronista brasileira que melhor soube temperar as palavras para servir ao mundo o que pensava sobre a vida. No livro “Não é sopa" (Companhia das Letras, 2001), ela traz o conceito de “comida perversa”: aquela que você come consciente de que é brega e faz mal.

Nas palavras de Nina, as comidas, divididas em categorias, assumem perversidades distintas e podem sintetizar depravações inconfessáveis a qualquer mastigador que esteja sóbrio.

No tempo em que like ainda não era moeda de troca, eu jamais havia assumido publicamente minha tara por pipoca com ketchup ou por brigadeiro com queijo safado de pacotinho. A baixaria que acontecesse entre o fogão e a geladeira deveria secretamente permanecer por ali - e apenas a pia seria testemunha ocular disso.

Gostos publicizados dificilmente causavam escândalos e a dupla formada entre o maxilar e a mandíbula era a única a performar durante as refeições. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, ​​muda-se o ser, muda-se a confiança… desde o século XVI, Luís de Camões e sua poesia já alertavam sobre a epopéia que é viver digerindo esse mundo.

Em alguma medida, você é o que come, mas você também come aquilo que é. Talvez por isso eu sempre tenha tratado comida como horóscopo: pode não ter nada a ver ou tudo pode fazer completo sentido - desde que alguém esteja disposto a acreditar na própria interpretação. Uma pessoa dada a sushi com ascendente em rodízio, por exemplo, pode ser tão evidentemente contraditória quanto um virginiano que autoproclama o perfeccionismo como seu principal defeito.

Mas sigamos honrando a memória de Horta: o que hoje poderia ser interpretado como comida brega que faz mal? É verdade que, entre as trends das redes sociais, o cafona está na moda e o absurdo maledicente protagoniza as mais perversas combinações. Nos espetáculos que aplaudimos (ou vaiamos) com as pontas dos dedos, comida perversa ganhou outros sentidos entre anúncios e denúncias.

De hambúrguer de ravióli a 'big bang' verde de pistache, a comida passou a ser tratada como dado sensível na LGPD - a Loucura Geral de Pratos Duvidosos. E há quem aceite os cookies sem nem avaliar o sabor.

Ok, talvez eu faça essa análise porque minha vida tem transpirado bem menos poesia do que a de Nina ou a de Camões; ou talvez porque minha barriga disbiótica já tenha sido demasiadamente queimada pela azia do mau gosto; ou talvez porque o algoritmo insiste em me presentear com uma receita de língua bovina e rabada com o título de “beijo grego”.

Em algum lugar do mundo já deve existir alguém editando novos conteúdos de Natal com panetone sabor virilha. E tudo bem se o gosto for somente artificial - afinal, estamos na era da mistura para bebida sabor café. Talvez uma rabanada feita com esse panetone pode viralizar, tentarei. Rabanada virilizada. As redes ainda não têm sido generosas com cozinheiros menos perversos que não aprenderam a biscoitar.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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