A pitangueira floresce em branco, mas frutifica em escarlate. Crédito: Murilo Mazzo/Shutterstock
Há árvores que não se contentam em dar frutos — oferecem lembranças. A pitangueira é uma dessas guardiãs do tempo. No quintal brasileiro, ela reina discreta, quase sempre de saia verde e colar de pitangas que pendem como risos rubros. O vento que balança suas folhas parece conhecer o segredo dos verões passados, dos risos infantis, das mãos manchadas de vermelho depois da colheita.
Chamam-na pyrang, do tupi, palavra que significa “vermelho” — cor do sangue e da vida. Nas línguas dos povos originários, o nome da pitanga já era poesia antes de ser palavra portuguesa.
Os tupis e guaranis conheciam bem sua doçura e suas virtudes: utilizavam as folhas em infusões contra febres e dores de garganta, faziam dos frutos tintas e remédios, e das árvores sombra amiga em aldeias e caminhos. Muito antes de o açúcar europeu adoçar as mesas coloniais, a pitanga já adoçava corpos e curava espíritos.
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Nos escritos coloniais, surgem as primeiras descrições encantadas do fruto. Pero de Magalhães de Gândavo, em História da Província Santa Cruz (1576), referiu-se aos “frutos vermelhos de sabor agridoce” que adornavam o mato brasileiro.
Gabriel Soares de Sousa, em seu Tratado Descritivo do Brasil (1587), citou “o arbusto frondoso de pequenas bagas vermelhas”, e Frei Vicente do Salvador, em História do Brasil (1627), viu na abundância das frutas tropicais um sinal da generosidade da terra. Cada um deles, à sua maneira, registrou o espanto europeu diante do pomar indígena — e, entre linhas, deixaram o testemunho de um encontro: o da botânica lusa com a sabedoria ancestral das florestas.
A pitangueira floresce em branco, mas frutifica em escarlate. Em alguns quintais, as frutas amadurecem em nuances que vão do laranja-âmbar ao vinho profundo — uma paleta que parece dialogar com o pôr do sol tropical.
Rica em vitamina C, licopeno e antocianinas, a pitanga é hoje exaltada por seus benefícios antioxidantes, digestivos e revigorantes. Mas os povos indígenas já a veneravam como planta sagrada, símbolo de vitalidade e proteção.
Se nos cadernos de receita ela é resgatada em licores artesanais, chefs contemporâneos a reintroduzem em coquetéis e molhos de inspiração tropical, provando que sua história continua viva no prato. Para quem observa com os olhos da história, contudo, a pitangueira é mais que ingrediente — é documento. Testemunha do convívio entre saberes, ela traduz o entrelaçamento de culturas que deu sabor e cor à formação do Brasil.
Quando uma pitanga cai, o chão se pinta de vermelho. E, talvez, nesse instante efêmero, a terra recorde as vozes que primeiro lhe deram nome, o gesto ancestral que colheu o fruto e o aroma que atravessou séculos.
Porque na pitangueira mora o Brasil — inteiro, mestiço, luminoso e poético. E talvez a melhor forma de honrar essa história não seja apenas observar seus frutos caídos, mas colhê-los e reescrever o sabor da nossa identidade em nossas próprias mesas.
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