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Peroás e Caramurus: a rixa político-religiosa de Vitória que virou "Fla-Flu"

Peroás e Caramurus: a rixa político-religiosa de Vitória que virou "Fla-Flu"

Conflito começou com disputa entre duas igrejas para decidir quem ficaria com uma imagem de São Benedito e travestia a luta entre as classes mais baixas e mais altas da Capital

Publicado em 4 de julho de 2021 às 10:37

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À direita, a Igreja do Rosário, território dos peroás e, à esquerda, o Convento de São Francisco, onde se reuniam os caramurus
À esquerda, a Igreja do Rosário, território dos peroás e, à direita, o Convento de São Francisco, onde se reuniam os caramurus. (Arquivo IJSN)
Rafael Silva
Repórter de Política / [email protected]

Entre os anos de 1833 e 1901 os moradores de Vitória viveram um intenso clima de "Fla-Flu", em uma das rixas mais duradouras na história do Espírito Santo. Movidos pela devoção a São Benedito, os habitantes da Capital naquele período se dividiam em dois grupos: os peroás, que se reuniam na Igreja do Rosário, na parte baixa da Capital; e os seus adversários, os caramurus, que participavam das missas no Convento de São Francisco, na cidade alta.

A briga, que a princípio se dava por uma disputa sobre quem abrigaria uma imagem de São Benedito, era levada a sério e impactou no vestuário, na música, na cultura e até na política local. Os membros do partido Conservador, que apoiavam o império e o sistema escravista, ficaram do lado dos caramurus, que representavam as classes mais ricas da cidade.

Já o Partido Liberal, com ideais republicanos e a favor da abolição da escravatura, ficaram do lado dos moradores mais pobres, os peroás, muitos deles pessoas que ainda eram escravizadas. Apesar desta pré-definição, havia algumas exceções, tanto de pessoas de posses entre os peroás, assim como mais pobres que ficavam ao lado dos caramurus.

A rivalidade era tanta que diversas vezes chegava-se às vias de fato, com agressões físicas entre os dois grupos. Há relatos de procissões simultâneas das duas irmandades, que se encontraram no caminho e transformaram o circuito religioso em um campo de batalha. Aliás, os termos caramuru e peroá, peixes de pouco valor comercial na época, foram colocados pelos adversários de cada lado, como uma forma de provocar os rivais.

O historiador Fernando Achiamé conta que nos primeiros anos da rixa, quando ela era mais intensa, não havia quem se mantivesse neutro, sem escolher um dos lados. Nas casas da cidade, os caramurus hasteavam bandeiras verdes, enquanto os peroás adotavam o azul como a cor de sua irmandade. As vestes religiosas também seguiam as cores de cada grupo.

Os peroás, que se acolhiam na Igreja do Rosário, apelidaram seus inimigos como caramurus por conta da cor esverdeada do peixe – que se assemelha a uma enguia – e por ser um animal considerado agressivo pelos pescadores, que eram grande parte dos trabalhadores livres de Vitória naquele período. Já os caramurus usavam, pejorativamente, o termo peroá para se referir aos inimigos, por ser um peixe de cor azulada e ser muitas vezes desprezado na pesca.

"Os antigos contavam que as senhoras peroás, nos dias de festa, envergavam vestes com as cores azuis do seu partido, mas calçavam sapatos ou chinelos da cor verde. Quando questionadas por que faziam isso, respondiam que era para pisar nas adversárias. E o contrário faziam as mulheres da facção caramuru – vestidos verdes, mas sapatos azuis", conta Achiamé.

“SEQUESTRO” DE SANTO MOTIVOU INÍCIO DA RIXA

Data: 27/12/2019 - ES - Vitória - Procissão de São Benedito - A caminhada saiu da Igreja do Rosário e foi até a Catedral de Vitória - Editoria: Cidades - Foto: Fernando Madeira - GZ
Procissão para São Benedito, em 2019, em Vitória. Devoção ao santo ainda é tradicional na Capital. (Fernando Madeira)

São Benedito, o frei franciscano de origem negra canonizado na Europa, tinha uma grande devoção entre os capixabas, principalmente entre os povos africanos que haviam sido escravizados. Em um naufrágio no século XIX na costa do Estado, sobreviventes que se salvaram ao se agarrar ao mastro do navio consideraram a proteção do santo como um milagre no episódio. Daí surgiu a tradicional fincada do mastro, em homenagem ao frei.

As festividades de São Benedito, celebradas nos dias 26 de dezembro, eram um dos principais eventos da Capital, em que era feita uma procissão carregando o santo do Convento de São Francisco até a parte baixa da cidade. A irmandade de São Benedito, composta pelos fiéis, é que organizava todo o festejo.

No entanto, em 1832, no dia da festa havia um clima chuvoso na cidade, de modo que o então responsável pelo convento, o frei Manoel de Santa Úrsula, não permitiu que a imagem de São Benedito fosse levada para a procissão. Alguns membros, incomodados com a decisão do frei, tentaram dissuadi-lo, mas não tiveram sucesso.

Dias depois, ao saber que estava sendo criticado pela irmandade, o frei mandou que todos os objetos do grupo fossem atirados pela janela do convento e trancou a imagem de São Benedito em uma cela. Foi a partir daí que alguns membros passaram a se reunir na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, na parte baixa da cidade, onde fundaram uma nova irmandade.

Em 1833, com o frei Manoel de Santa Úrsula deixando o Espírito Santo, um novo frade assumiu o convento e libertou a imagem de São Benedito, que foi recolocada no altar. No entanto, em setembro daquele ano, a nova irmandade, formada na Igreja do Rosário, roubou o santo para que ele ficasse na parte baixa da cidade.

Como os membros da irmandade antiga, dos que permaneceram acompanhando as missas no Convento de São Francisco, também reivindicavam a imagem, deu-se início à rixa que duraria até 1901, quando a Arquidiocese de Vitória, chefiada por Dom Fernando Monteiro, irmão de Jerônimo Monteiro, determinou o fim das procissões das irmandades.

Durante o período que existiram, como as brigas se tornaram cada vez mais frequentes, convencionou-se que durante seis meses do ano a imagem ficaria no convento, reduto dos caramurus, e no restante do ano na igreja onde se reuniam os peroás.

Escadaria da Igreja Nossa Senhora do Rosário, em Vitória
Escadaria da Igreja Nossa Senhora do Rosário, em Vitória. (Arquivo Público do Espírito Santo)

ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA "UNIU" PEROÁS E CARAMURUS

Segundo o historiador Fernando Achiamé, há registros de que as duas irmandades deram uma trégua e fizeram as pazes no dia 13 de maio de 1888, durante as festas que celebravam a abolição da escravatura. Naquela altura, tanto conservadores (que predominavam entre os caramurus), quanto os liberais (maioria entre os liberais) se posicionavam pelo fim da escravidão.

"Durante o Império, havia uma identificação dos caramurus com os conservadores e dos peroás com os liberais, mas é preciso considerar que nessa época muitas pessoas não tinham acesso ao voto. Além do mais, o sistema político era muito centralizado e a política local era dominada pelas ordens que vinham de fora", explica Achiamé.

Com o início da República, as diferenças políticas entre os dois grupos foram se desmanchando. Contudo, a disputa religiosa, embora bem menos agressiva do que havia sido no período imperial, ainda se manteve viva durante mais alguns anos.

Ilustração do Convento de São Francisco no século XIX
Ilustração do Convento de São Francisco no século XIX. (Arquivo IJSN)

"Após a proclamação da República, as desavenças estavam bastante atenuadas. Mal comparando com a realidade atual, era como uma família que torcia para um mesmo time de futebol, mas seus membros podiam exercer suas escolhas políticas de forma diversificada", compara.

Nos esportes, as irmandades também influenciaram a criação de dois clubes de regatas, já que o remo era a categoria esportiva mais popular naquele período. Os barcos dos caramurus eram pintados na cor verde, enquanto os dos peroás, na cor azul. Os torcedores também se pintavam e erguiam bandeiras durante as disputas.

Outubro Rosa no Viaduto Caramuru
Viaduto Caramuru: construído anos depois do fim da rixa, ganhou esse nome por ser construído na ladeira Caramuru, utilizada pela irmandade para chegar ao Convento de São Francisco. (Fernando Madeira)

HERANÇA

Após mais de um século do fim da rixa, a maior herança que restou da disputa foi o nome dado a um viaduto, construído em 1927, que permanece de pé até hoje, na parte alta de Vitória. O Viaduto Caramuru ganhou esse nome por servir de acesso ao Convento de São Francisco, antiga sede da irmandade.

Nas artes, o episódio também ganhou registros. O escritor e jornalista Adilson Vilaça escreveu o conto "A Inquisição de São Benedito", em que narra a rotina de moradores mais pobres de Vitória, reconhecidos como peroás, dias antes das festividades para o santo.

Em 1988, o jornalista José Irmo escreveu o "Auto de São Benedito dos Pretos", levando ao teatro a história da rixa e de Vitória na época do império, em formato de musical. A peça voltou a ficar em cartaz em 1999, em uma nova adaptação, com direção de José Luiz Gobbi, que ficou eternizado no teatro capixaba como a personagem Marly.

"Na primeira montagem, ficamos em cartaz durante três semanas no Teatro Carlos Gomes. Foi bem na mesma semana que foi proclamada a nova Constituição. Eu escrevi as músicas, pesquisando cantigas da época. Transformei esse texto em enredo para escola de samba também. É uma história inspiradora sobre o nosso Estado", conta José Irmo.

Para o cientista político e historiador João Gualberto Vasconcellos, a disputa histórica entre peroás e caramurus reflete uma desigualdade social que caracterizava a cidade, em um período que a maior parte dos moradores de Vitória era composta por pessoas escravizadas, de libertos e seus descendentes.

"A disputa era um resquício da sociedade tradicional, que se organizava a partir de mitos religiosos sobretudo. São disputas pelo sagrado que marcam a ordem social, de um lado aqueles que têm posses na vida e de outro lado os mais pobres. É interessante que essa luta se acirrou a ponto de até trocarem agressões. As pessoas saiam de casa já prontas para brigar", destaca Vasconcellos.

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