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O que é e como funciona o Tribunal de Haia

O que é e como funciona o Tribunal de Haia

Corte Penal Internacional opera desde 2002 e julga quatro tipos de crimes. Acusação contra Jair Bolsonaro foi enviada ao Tribunal, mas dificilmente deve seguir adiante

Publicado em 27 de julho de 2020 às 19:57

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Martelo de juiz
Pena do Tribunal Penal Internacional, em Haia, pode chegar a 30 anos de prisão. Em casos extremamente graves é possível condenação a prisão perpétua. (Pixabay)

Após a Rede Sindical Brasileira UniSaúde, que representa mais de um milhão de trabalhadores da área de saúde no paísapresentar uma queixa contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, acusando-o de crimes contra a humanidade e genocídio, muitas dúvidas acerca do que é esta Corte e suas competências surgiram.

A queixa foi encaminhada devido à atuação de Bolsonaro, considerada pelo grupo como negligente, no combate à pandemia de Covid-19 no Brasil. Apesar da repercussão do caso, especialistas acreditam que há poucas chances da acusação ser admitida pela Corte internacional. 

Mas afinal, o que é o Tribunal de Haia?

Haia, na verdade, é uma cidade na Holanda onde está localizado o Tribunal Penal Internacional (TPI), que julga crimes graves de âmbito internacional, como o próprio nome diz. É uma Corte encarregada de julgar indivíduos e não Estados. Quem julga nações ou países é o Tribunal Internacional de Justiça.

CRIAÇÃO

O TPI foi criado em 1998, com a aprovação do Estatuto de Roma, durante uma conferência entre países. Suas atividades, contudo, foram iniciadas somente em julho de 2002. A criação deste tribunal foi feita após a discussão sobre a necessidade de uma Corte permanente para processar e julgar pessoas acusadas de cometer crimes de maior gravidade. 

Até então, dois outros tribunais de âmbito internacional já haviam sido criados, mas para julgar indivíduos em situações pontuais, como o tribunal de Nuremberg, na Alemanha, que condenou criminosos de guerra nazistas, e o Tribunal Militar de Tóquio, que julgou japoneses que participaram de ataques no mesmo período. 

QUAIS CRIMES SÃO JULGADOS PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL?

São quatro tipos de crimes processados e julgados pelo TPI: crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão (este incorporado em 2018). No caso de Bolsonaro, a queixa foi por dois deles: genocídio e contra a humanidade.

Genocídio

Ocorre quando existe um ataque com o objetivo de destruir, total ou parcialmente, um grupo definido por sua nacionalidade, por sua etnia, por sua raça ou por suas práticas religiosas. Enquadra-se nesse crime a perseguição seguida de assassinatos contra um grupo de cristãos ou muçulmanos devido à crença religiosa, por exemplo. 

Crime contra a humanidade

Correspondem a ataques generalizados ou sistemáticos contra qualquer população. Entre os atos que se incluem neste tipo de crime estão: homicídio, extermínio, escravidão, transferência forçada de uma população, prisões ilegais que violam o Direito Internacional, tortura, desaparecimentos de pessoas, crimes de Apartheid e crimes relacionados a práticas sexuais não consentidas.

Crimes de guerra

De acordo com o Estatuto de Roma, fazem parte dos crimes de guerra todas as ações que atentam contra a Convenção de Genebra, estabelecidas em 12 de agosto de 1949. A lista de crimes é extensa, mas alguns exemplos são: privar um prisioneiro de guerra de um julgamento justo e imparcial, deportações ou transferências ilegais, atacar intencionalmente populações civis em geral em conflitos armados, atacar com o objetivo de destruir os bens de uma população civil.

Crimes de agressão

Esta quarta modalidade de crime foi incorporada em 2018 e é a única que não está claramente definida em seu artigo. Algumas situações que são consideradas como crimes de agressão: quando uma pessoa ou grupo de pessoas com capacidade de controlar as forças armadas de uma nação planejam ou realizam um ataque a outro país, prejudicando sua independência política, sua condição territorial, ou abalando sua soberania.

QUALQUER PESSOA PODE SER JULGADA PELA CORTE?

Não. Apenas cidadãos de países que aderiram às normas do Estatuto de Roma se submetem às decisões do tribunal. Atualmente, 120 nações aceitam, de forma voluntária, a jurisdição do TPI, entre elas o Brasil. A adesão foi feita por meio de decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso, em setembro de 2002. Países como os Estados Unidos não fazem parte do Estatuto de Roma e por isso não podem ser julgados pelo TPI.

Uma diferença em relação aos tribunais nacionais é que os crimes processados e julgados pela Corte em Haia não prescrevem com o tempo. Assim, caso um processo seja aberto, o julgamento vai ocorrer, mais cedo ou mais tarde.

QUANDO O TRIBUNAL PODE SER ACIONADO?

O tribunal geralmente se justifica como último recurso, quando houve omissão ou negligência de tribunais nacionais para tratar de crimes graves. A grande maioria das ocorrências é realmente investigada no país de origem, sem apelo ao foro internacional. Isso não impede que uma queixa seja apresentada por um grupo ou entidade, sem ter passado por um tribunal nacional. No entanto, as chances de esta acusação ser admitida e resultar em um processo ou julgamento são baixas, segundo especialistas. 

Aspas de citação

É um tribunal que atua sob o princípio de subsidiariedade, ou seja, tenta-se resolver no plano local anteriormente. No geral, o TPI só vai receber a denúncia quando os tribunais nacionais forem omissos ou negligentes ao julgar uma pessoa que cometeu um crime grave, de caráter internacional. Ele não viola a soberania dos Estados, porque é subsidiário

Marcelo Obregon
Especialista em Direito Internacional e professor da Faculdade de Direito de Vitória (FDV)
Aspas de citação

Obregon explica que a queixa, ao ser apresentada ao Tribunal Penal Internacional, passa por uma avaliação de admissibilidade. Caso sejam verificados indícios de algum dos quatro tipos de crime julgados pela Corte, o caso é encaminhado para um promotor, que decide se aceita ou arquiva a denúncia após análise.

"O promotor recebe a queixa com uma acusação de genocídio, por exemplo. Depois disso ele faz uma fiscalização, aciona as autoridades daquele país, verifica o que foi feito, se o tribunal nacional agiu ou foi omisso. É preciso provas contundentes para que o caso siga adiante. Se comprovado que os tribunais nacionais do Estado-parte foram omissos, aí pode ser feita a denúncia e dar início ao processo", explicou.

CONDENAÇÕES

Um processo no TPI pode levar anos para ser julgado, segundo especialistas. As condenações têm pena máxima de 30 anos de prisão, ou em casos considerados extremamente graves, prisão perpétua. A sentença possui caráter obrigatório a ser cumprida no país de origem do indivíduo julgado. 

Até hoje, apenas 21 casos foram examinados pelo Tribunal Penal Internacional e três levaram à condenação. Todos eles envolvem ex-chefes de guerra na República do Congo. Confira:

Thomas Lubanga: Foi o primeiro réu a ser condenado pelo tribunal, em 2012,  oito anos após a abertura do processo criminal. O ex-líder de um movimento rebelde da República Democrática do Congo foi condenado por crime de guerra por ter recrutado crianças com menos de 15 para lutar nos conflitos étnicos na região de Ituri entre 2002 e 2003, no país. A sentença foi de 12 anos de prisão. 

Germain Katanga:  Foi condenado em 2014 pelo Tribunal Penal Internacional por cumplicidade em crimes contra a humanidade em um massacre executado numa localidade da República Democrática do Congo em 2003. É ex-militar da Força de Resistência Patriota de Ituri (FRPI).  De acordo com várias ONGs, mais de 60 mil pessoas morreram desde o início da violência em 1999, na região.

Bosco Ntaganda: Ex-general do exército do Congo, foi condenado à pena máxima, de 30 anos, em 2019, por 13 crimes de guerra, cinco crimes contra a humanidade e abusos cometidos em 2002 e 2003 em Ituri, na região nordeste da República Democrática do Congo. Ele foi acusado de matar um padre e considerado culpado por ordenar estupros de mulheres e meninas. 

QUAIS AS CHANCES DE A QUEIXA CONTRA BOLSONARO SE TORNAR UM PROCESSO?

No caso da queixa apresentada contra Bolsonaro, a Rede Sindical Brasileira Unisaúde acusa o presidente de "falhas graves e mortais" na condução da resposta à pandemia de Covid-19. Afirma também que desde o início da crise sanitária o governo brasileiro tem adotado postura negligente e irresponsável que contribuiu para que o país atingisse a marca de mais de 80 mil mortes pela nova doença. 

A entidade, assim, aponta que o presidente cometeu crimes contra a humanidade e de genocídio, ambos julgados pelo Tribunal Penal Internacional em Haia.  Especialistas acreditam, contudo, que as atitudes de Bolsonaro dificilmente serão enquadradas nesses crimes e que a Corte nem sequer chegará a analisar a queixa.

Para a professora da Faesa e especialista em Direito Internacional Stella Emery, o TPI não é o tribunal mais adequado para tratar da acusação apresentada. Ela vê o acionamento como uma forma de chamar a atenção internacional para o problema no país.

Aspas de citação

Para ser configurado genocídio, tem que ter de fato a morte generalizada de um grupo de população, perseguição. É algo muito grave e sério. O crime contra a humanidade poderia ter sido levado para outros tribunais, com uma denúncia de descumprimento de regras de saúde, por exemplo. Não acredito que esta queixa passará pela admissibilidade do TPI, acho que foi mais uma jogada para chamar a atenção internacional para o caso. Judicialmente, não vejo como adequada

Stella Emery
Especialista em Direito Internacional
Aspas de citação

Obregon também acredita que a acusação não terá nenhum efeito judicial. Ele ainda chama atenção para o fato de não haver, até o momento, nenhum tipo de prova que mostre negligência ou omissão do Supremo Tribunal Federal (STF), que deveria receber o caso antes do TPI ser acionado.

"É preciso provas que ele matou um grupo de pessoas, uma comunidade inteira. Além disso, essa denúncia teria que ter sido feita primeiro ao Supremo Tribunal Federal e aí provado que houve algum tipo de negligência ou omissão do Supremo. Não vou dizer que é impossível, mas muito difícil que esta queixa seja recebida pelo tribunal", opinou.

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