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Publicado em 10 de novembro de 2021 às 08:53
A Câmara Municipal de Vitória aprovou nesta terça-feira (9) o projeto de lei 101/2021 que institui o programa "Eu Escolhi Esperar" com o objetivo de prevenir a gravidez precoce na Capital. Embora a proposta não cite diretamente a abstinência sexual, o nome do projeto indica que essa é a principal medida incentivada.>
O texto aprovado é de autoria do presidente da Câmara, Davi Esmael (PSD). Davi, que é evangélico, não escondeu o fundo religioso do projeto que, segundo ele, foi "mentorado e orientado" pelo pastor Nelson Júnior. O pastor trouxe o movimento "Eu Escolhi Esperar" para o Brasil em 2011 e prega que jovens só façam sexo após o casamento.>
Íntegra do projeto de lei de autoria do vereador Davi Esmael sobre medidas de prevenção à gravidez precoce em Vitória
Tamanho de arquivo: 324kb
A proposta da Câmara vai na mesma linha da campanha lançada em 2019 pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), de Damares Alves: a inclusão da abstinência nos debates sobre educação sexual nas escolas.>
Embora o projeto tenha sido aprovado pela maioria dos parlamentares (foram 9 votos contra 2) e recebido elogios dos colegas, a abstinência sexual é considerada uma medida ineficaz por especialistas da área de Saúde para combater a gravidez precoce.>
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"A gente precisa ser realista e, ao invés de fingir que não vai acontecer [relação sexual], a gente tem que dar assistência em saúde e oferecer métodos anticoncepcionais e aconselhamento. Isso é respaldado pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia", afirmou a professora da Ufes e médica ginecologista Chiara Musso.>
A medida também é vista como uma estratégia "inócua do ponto de vista científico, antropológico e do desenvolvimento afetivo e emocional do ser humano", de acordo com documento divulgado pela Sociedade Brasileira de Pediatria em 2020.>
O texto aprovado é vago. Ele prevê que as Secretarias de Educação e de Saúde da Capital divulguem informações relacionadas às medidas preventivas e educativas para a redução de incidência da gravidez precoce, mas não cita quais seriam essas medidas.>
O projeto de lei também cita como uma das ações do programa a "exposição e divulgação de material explicativo, destinados aos adolescentes, esclarecendo eventuais causas, consequências e formas de prevenção da gravidez precoce". Porém, não detalha quais informações serão passadas nem de que maneira.>
Durante debate da proposta no plenário, Davi não mencionou dados ou estudos nos quais o projeto foi baseado. Em vez disso, afirmou que a matéria estava alicerçada "naquilo que a Bíblia diz" e citou o versículo de Eclesiastes 13: "Há tempos para todas as coisas", para defender, o que ele frisou, ser a solução que mais acredita para combater a gravidez de adolescentes.>
"Que a gente possa ofertar para Vitória mais uma solução, aquela que Davi mais acredita, e que outros podem não acreditar tanto, mas que a gente precisa entender que é sim uma temática", destacou o parlamentar.>
Davi também disse que não queria impor a abstinência sexual como única forma de prevenção, mas não citou outras medidas. "Em nenhum momento quer se impor como a única forma, uma das formas é que as crianças e adolescentes entendam que há um tempo para atividade sexual.">
Davi Esmael
VereadorA importância da implementação de políticas públicas para prevenir a gravidez na adolescência é unânime entre os vereadores da Câmara de Vitória e também entre médicos e especialistas da área de Saúde.>
"Todos queremos uma conscientização para os nossos jovens, então defendamos a orientação de uma forma técnica, com base na ciência. E sim, é necessário investimento público para isso", defendeu o vereador Leandro Piquet (Republicanos).>
Mas a forma como o PL 101/2021 foi elaborado também foi questionada.>
"O tema de gravidez na adolescência é fundamental, o tema do abuso sexual também. Aliás, esse é um dos temas que têm mais apelo popular, e com toda a razão. Mas, na nossa avaliação, esse tema nas escolas, na educação, já vem sendo pautado por um conjunto de normativas, inclusive previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O que a gente tem que fazer é fortalecer as legislações existentes e contribuir que elas sejam de fato implementadas", afirmou a vereadora Camila Valadão (Psol) durante a discussão do projeto no plenário da Câmara.>
A fala de Camila foi corroborada pela vereadora Karla Coser (PT). As duas, inclusive, foram as únicas a votar contra o projeto. Para Karla, uma ideologia religiosa deve ser respeitada dentro das igrejas, mas não pode ser imposta como política pública. >
"Eu acredito que, enquanto uma política interna de uma religião, o "Escolhi Esperar" pode funcionar. Se você acredita fielmente em uma fé e essa fé te pede para esperar até o casamento para você ter as relações, isso é uma coisa respeitada, cada um escolhe. Mas nós não podemos imprimir a nossa fé a outras pessoas enquanto política pública", opinou a vereadora.>
Karla Coser
Vereadora de VitóriaVitória não é o primeiro município a aprovar ou discutir um projeto com a temática. Em 4 de novembro, a Prefeitura de Cariacica sancionou uma lei que cria a "Semana Eu Escolhi Esperar", também voltada para a prevenção contra a gravidez na adolescência, na segunda semana de março de cada ano. >
O texto, novamente, não cita o termo "abstinência", mas prevê a exposição de cartazes citando "causas, consequências e como prevenir" a gravidez precoce.>
Os projetos vão na mesma linha de vários outros no país, que, assim como a campanha nacional lançada pelo governo federal no ano passado, não recomenda explicitamente a abstinência sexual, mas tem esse objetivo.>
Para o médico de Família e Comunidade e professor da UVV Diego Brandão, a forma como essas iniciativas são apresentadas afastam um debate qualificado sobre o assunto.>
"Muitas iniciativas como essa omitem a palavra abstinência, omitem as questões relacionadas a direitos reprodutivos, inclusive a discussão sobre métodos anticoncepcionais, porque o que pode ter de pano de fundo, na verdade, é a discussão moralista que você traz com um cunho religioso, por um viés mais conservador. Quando se aprova esse tipo de iniciativa, o debate tende a ser reducionista em torno da abstinência, o que não traz bons resultados, pelo contrário, afasta discussões sobre o assunto", avalia.>
O que prevê o projeto aprovado
I - promoção de palestras direcionadas aos profissionais de saúde e educação, voltadas à consecução dos objetivos do programa;
II - exposição e divulgação de material explicativo, destinados aos adolescentes, esclarecendo eventuais causas, consequências e formas de prevenção da gravidez precoce;
III - direcionamento de atividades para o público alvo do programa, principalmente os mais vulneráveis;
IV - monitoramento de possíveis casos para avaliação e cuidado, promovendo a interdisciplinaridade entre os profissionais que irão atuar no segmento.
Logo no início da sessão desta terça-feira (9), a vereadora Camila Valadão (Psol) apontou irregularidade na tramitação da matéria. O artigo 95 do regimento interno determina que "nenhum vereador pode relatar o mesmo projeto em mais de uma comissão". Neste caso, Duda Brasil (PSL) foi relator na Comissão de Constituição e Justiça e na Comissão de Saúde e Assistência Social.>
Por causa disso, o projeto retornou à Comissão de Saúde e Assistência com um novo relator. No entanto, Davi Esmael requereu um pedido de urgência e o PL retornou para votação no plenário no mesmo dia. >
“Do ponto de vista técnico, esse projeto tem um problema de vício de iniciativa, pois cria atribuição para a Secretaria de Educação e para a Secretaria de Saúde, e esperamos, portanto, que seja vetado pela prefeitura”, afirmou a vereadora em plenário.>
Para virar lei, o projeto precisa ser sancionado pelo prefeito Lorenzo Pazolini (Republicanos). Ele também pode vetar a iniciativa.>
A reportagem de A Gazeta ouviu médicos e especialistas em Direito da Saúde para avaliar se a abstinência sexual funciona como política pública para prevenir a gravidez na adolescência.>
Na avaliação da professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e médica obstetra e ginecologista Chiara Musso, a estratégia é ineficaz.>
"Na minha experiência de 21 anos de médica e ginecologista, eu não vejo como uma política pública eficaz. É uma opção de algumas famílias, algumas pessoas, mas, pensando na população em geral, na massa, não vejo eficácia. A gente tem que dar assistência em saúde e oferecer métodos anticoncepcionais e aconselhamento. Isso é respaldado pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia", destacou.>
Já a jurista e especialista em Direito Constitucional e Saúde Elda Bussinger afirma que a matéria, além de promover uma política pública comprovadamente ineficaz contra o problema da gravidez na adolescência, é também inconstitucional.>
"(A abstinência) Não é uma política eficaz. Tanto que a gente percebe que no debate não se discutiu evidências em momento nenhum, porque, dentro desse coletivo da Câmara, as evidências científicas não importam. O Estado não pode se apropriar dessas pautas morais e romper com a laicidade e tentar impor uma visão de mundo sobre uma sociedade que é plural, negligenciando a realidade da sexualidade na adolescência", diz. >
Para a especialista, igrejas ou indivíduos podem aplicar esse tipo de doutrina em seu meio, mas ela não pode se transformar em política pública, afetando toda a população.>
"Não discuto do ponto de vista pessoal, que cada um decida se deve ou não esperar. São decisões de natureza individual. O indivíduo conduz como administra seu corpo. Claro que igrejas podem ter pautas nesse sentido. Mas o Estado não pode ser sujeito de uma pauta religiosa", aponta.>
O mesmo entendimento tem o médico de Família e Comunidade e professor da UVV, Diego Brandão. Ele afirma que a gravidez precoce tem que ser discutida amplamente na sociedade, levando em conta fatores sociais.>
"Essa discussão de gravidez na adolescência deveria ser mais ampla sobre quais são os fatores sociais que fazem com que tenhamos tantos adolescentes nessa condição, que não têm acesso a serviço de saúde e educação de qualidade. Se a gente não tiver esse caminho de mudança social, é pouco provável que a gente atinja a redução desses indicadores. Está muito além de reduzir a discussão em sexo ou não sexo", afirmou. >
Os especialistas ressaltam que a gravidez na adolescência é um problema sério e que precisa ser enfrentado no país. Mas defendem que isso seja feito com políticas públicas baseadas em evidências científicas.
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