Uma pedra de cerca de 150 toneladas rolou no Morro do Macaco provocando a morte de dezenas de pessoas
Uma pedra de cerca de 150 toneladas rolou no Morro do Macaco provocando a morte de dezenas de pessoas. Crédito: Gildo Loyola

Sobreviventes recontam a história da tragédia no Morro do Macaco

Após um deslizamento, 40 pessoas morreram e 600 famílias ficaram desabrigadas em uma madrugada chuvosa de janeiro de 1985. Apesar disso, ainda hoje há moradores em áreas de risco na região

Publicado em 21/10/2019 às 07h53

ALINE NUNES E VIVIANN BARCELOS

A chuva caía já há alguns dias, mas poucos poderiam prever que era o prenúncio de uma das maiores tragédias do Estado: na madrugada de 15 de janeiro de 1985, uma pedra de cerca de 150 toneladas foi atingida por um raio e rolou no Morro do Macaco, em Tabuazeiro, Vitória. No caminho, deixou 40 mortos, 150 feridos, 600 famílias desabrigadas, dezenas de desaparecidos e até hoje muita tristeza. Mesmo assim, há quem insista em morar em áreas de risco na região.

Essa é a terceira reportagem da seção Conexão 1928 - ano de fundação de A Gazeta - que resgata grandes reportagens feitas pelo jornal ao longo de 91 anos de história.

A aposentada Alverina Augusta de Oliveira, 70 anos, não tinha como saber que seria uma das sobreviventes de sua família, mas algo lhe dizia que o lugar onde morava no morro não era seguro.

Alverina Augusta de Oliveira

Aposentada

"Uma voz falava ‘sai de lá, sai de lá’ e eu saí. Continuei no morro, mas em outro lugar. Insisti para minha irmã sair também, mas ela não quis deixar a casinha dela. Era de lajota, era o que tinha. Na minha família, eram 10 pessoas morando lá e só salvaram três"

Os corpos nunca foram resgatados. Ficaram “enterrados” sob a pedra que parou exatamente onde, antes, estava a casa de tábuas de Alverina e a de tijolos da família da irmã. Com a tristeza carregada no olhar, a aposentada lembra que desmaiou ao receber a notícia do deslizamento. “Fiquei doidinha. Depois, fui atrás para ver o que tinha acontecido. Os guardas me empurravam para eu não entrar (na área isolada), mas fui assim mesmo.”

Alverina Augusta de Oliveira perdeu sete pessoas da família. Crédito: Vitor Jubini
Alverina Augusta de Oliveira perdeu sete pessoas da família. Crédito: Vitor Jubini

Para Alverina, foram dias e dias muito difíceis porque, além de cuidar da casa e de quatro filhos pequenos, precisava resolver os aspectos práticos, como reconhecimento de corpos, daquela tragédia que carregou praticamente sozinha. “Aqui, naquela época, era só eu e ela. Então, fiquei eu e Deus. Não tinha ninguém por mim. Foi muito difícil, muito pesado. Entrei em depressão. Até hoje, para mim, é difícil lembrar.”

A manicure Vera Lúcia Lima se emociona com as lembranças. Crédito: Viviann Barcelos
A manicure Vera Lúcia Lima se emociona com as lembranças. Crédito: Viviann Barcelos

As recordações também marcam a vida da manicure Vera Lúcia Lima, 59 anos, embora nenhum familiar tenha morrido. Só que, quando recebeu a notícia do deslizamento e das mortes, estava fora do morro e pensou que seus filhos e sua mãe estivessem entre as vítimas. Só de contar, Vera se emociona.

Vera Lúcia Lima

Manicure

"Quando cheguei aqui e não vi a pedra no alto do morro, pensei: ‘morreu todo mundo na minha casa’. Subi correndo até encontrar meus filhos. Ainda assim, a cena que encontrei foi muito triste. Tinha até um bebezinho morto"

Vera diz, ainda, que sangue escorria pelos becos e ruas do morro junto com a água da chuva. Com o sistema de esgotamento sanitário precário na região, sobretudo após o desmoronamento, foram se formando poças vermelhas. “Ficou aquele sangue parado por uns 15 dias. Depois da chuva, o sol esquentava o chão e o mau cheiro era insuportável.”

MORTE NOS BRAÇOS

Muitas crianças, conforme levantamentos da época em que A Gazeta acompanhou o caso, estavam entre os mortos. E o cenário no Morro do Macaco era aterrador com a quantidade de corpos espalhados, de bebês a idosos. Mesmo para um profissional experiente, como o perito aposentado Francisco de Assis Pinto Gonçalves, conhecido como França.

Ele estava de plantão na madrugada de 15 de janeiro, e foi ao local para fazer a perícia e ficou muito emocionado diante do que encontrou. “O perito atende quando o fato é consumado, mas cheguei e havia pessoas sendo socorridas. Não me furtei a ajudar. Trabalhei 48 horas direto. O momento mais difícil, e que até hoje me emociona, foi o resgate da criança. Está marcado para o resto da minha vida.” França pegou uma menina no colo, que ainda tinha sinais vitais, mas logo ela morreu.

Francisco de Assis Pinto Gonçalves, o França

Perito

"Naquele afã de salvar, parecia estar se mexendo, corri para tirá-la dos escombros. Acho que cheguei até a fazer respiração boca a boca para retirar a lama. Quando vi que não tinha mais o que fazer, só sentei e encarei a realidade: a gente não é nada"

A imagem dele, registrada pelo fotógrafo aposentado de A Gazeta Gildo Loyola, é tão emblemática que foi reproduzida em vários outros veículos de imprensa. As cenas e os sons também são muitos presentes na mente do perito. Eram gritos, cachorro latindo, pessoas correndo de um lado a outro desesperadas, choro e desolação. “Parece até um pesadelo. Mesmo acostumado a lidar com a morte todos os dias, aquele dia me deixou muito marcado.”

Uma criança morreu nos braços do perito França. Crédito: Gildo Loyola
Uma criança morreu nos braços do perito França. Crédito: Gildo Loyola

Assim como França, que subiu o morro para periciar e acabou colaborando no resgate de sobreviventes, muitas pessoas se solidarizaram com as vítimas e se reuniram na região para ajudar. É o caso do comerciante Domingos Folador, 68 anos. Morador da parte baixa de Tabuazeiro, ele subiu o morro às pressas para socorrer os atingidos pela tragédia.

Domingos Folador

Comerciante

"Tudo o que vem desse dia é uma memória muito triste. Perdi um amigo de infância, que dormia na sala na hora do deslizamento. A mulher e a filha, que estavam no quarto, sobreviveram. O mais difícil é para as famílias que não conseguiram resgatar os corpos. Muitas pessoas nunca foram enterradas. Ficaram debaixo da pedra. É algo inesquecível, terrível!"
Domingos Folador ajudou no resgate de vítimas. Crédito: Vitor Jubini
Domingos Folador ajudou no resgate de vítimas. Crédito: Vitor Jubini

Diante da tragédia, o Estado decretou três dias de luto. As pessoas que precisaram deixar suas casas seguiram caminhos distintos. Um grupo de 200 famílias foi levado para um conjunto habitacional em Feu Rosa, na Serra. Anos mais tarde, receberam a escritura do imóvel. Outros foram assistidos com aluguel social da Prefeitura de Vitória, mas houve ainda aqueles que decidiram persistir e voltaram a ocupar o Morro do Macaco.

Em 2008, eram 100 famílias nesta condição, mas elas foram retiradas naquele ano porque a área era de risco. Algumas receberam carta de crédito do município e adquiriram imóvel no Residencial Tabuazeiro, do programa Minha Casa, Minha Vida. A área onde houve o deslizamento hoje está segura, segundo a Defesa Civil, porque foi feita obra de contenção, mas existem outros pontos perigosos.

150  AINDA VIVEM EM ÁREAS DE RISCO

Mais de 34 anos após o deslizamento no Morro do Macaco, 150 pessoas ainda vivem em áreas de risco no chamado Alto do Tabuazeiro, em Vitória. Elas residem em 37 imóveis erguidos em pontos onde não há segurança para a moradia. Não se trata da mesma área onde houve a tragédia porque, no local, foi feita obra de contenção de encosta, mas nas imediações, segundo a prefeitura. “São algumas áreas de riscos pontuais devido a escavações irregulares, ou terrenos irregulares”, explica Jonathan Jantorno, coordenador da Defesa Civil de Vitória.

O risco tanto desses moradores quanto de outros milhares que vivem em situação semelhante na Capital é um problema antigo e, na maioria das vezes, nada fácil de resolver. Muitas famílias não têm para onde ir. Sem contar aquelas que se recusam a deixar as casas onde construíram suas histórias, no alto dos morros de Vitória. Um drama urbano e social.

Sobre a atuação preventiva do órgão, Jantorno diz que as áreas mapeadas são monitoradas permanentemente, e são produzidos relatórios geológicos sobre os riscos. Quando é identificada uma nova região vulnerável, a prefeitura avalia a viabilidade de fazer uma obra de contenção para eliminar o problema. O órgão, segundo ele, ainda conta com o apoio de Núcleos Comunitários de Proteção e Defesa Civil, que atuam nas 25 áreas mapeadas. Desde 2012, foram formados cerca de mil voluntários.

Vista do Morro do Macaco: famílias ainda vivem em áreas de risco. Crédito: Vitor Jubini
Vista do Morro do Macaco: famílias ainda vivem em áreas de risco. Crédito: Vitor Jubini

Jonathan Jantorno

Coordenador da Defesa Civil Municipal

"São pessoas capacitadas pela Defesa Civil para poder atuar no período de chuva, auxiliando a comunidade. Elas são habilitadas a fazer o monitoramento das áreas de risco, isolamento, retirada das pessoas para local seguro e sinalizar as rotas de fuga"

Jantorno estima que, atualmente, cerca de 6,6 mil pessoas vivam em 25 regiões de risco mapeadas pela Defesa Civil do município. Ele recomenda que, ao adquirir uma área em morro, a pessoa entre em contato com a prefeitura para verificar se o terreno ou imóvel está em local de risco já delimitado. “É possível morar nos morros, porém tem que ser monitorado e precisa de algumas intervenções de segurança como, por exemplo, não realizar o corte de 90º de talude (encosta), sem obra de contenção em seguida, porque pode vir a deslizar em período de chuva.”

O coordenador da Defesa Civil orienta, ainda, a não lançar esgoto na encosta porque isso infiltra o solo e também pode causar deslizamento, assim como evitar o plantio de árvores que acumulam muita água, a exemplo das bananeiras, que encharcam a terra. “E, a qualquer sinal de movimentação ou de rachadura no imóvel, é fundamental entrar em contato com a Defesa Civil” , alerta. O contato pode ser feito pelos telefones 156 ou 98818-4432.

REFÉNS DO TRÁFICO DE DROGAS

Marcados pela tragédia, os moradores do Morro do Macaco também vivem atualmente outros dramas. O tráfico de drogas domina o ritmo de vida das pessoas e o direito de ir e vir não é para todos. A disputa por pontos de venda de entorpecentes já expulsou muitos de suas casas, e por lá impera a lei do silêncio - ninguém fala para não se tornar alvo dos criminosos. 

A situação é tão crítica que até a polícia enfrenta problemas. Há pouco mais de quatro meses, uma troca de tiros intensa entre militares e traficantes deixou os moradores do Morro do Macaco apavorados.

Contra os PMs foram efetuados mais de 200 disparos. Dias depois, um ônibus foi incendiado por bandidos no ponto final de Tabuazeiro, após a prisão de um suspeito na operação.

O tráfico na região tem o apoio do Primeiro Comando da Capital (PCV), facção criminosa que opera no Complexo da Penha. Como rivais, a principal organização é o Terceiro Comando Puro (TCP), que atua em Andorinhas, e os confrontos entre os grupos são frequentes, intimidando a população dos bairros.

Sobre o policiamento no Morro do Macaco, a Polícia Militar respondeu para a reportagem que tem intensificado as ações repressivas em todo o bairro Tabuazeiro, inclusive no morro, resultando “em diversas apreensões de drogas, armas, além de prisões na região”.

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