Pedra do Cruzeiro, Alto Liberdade, ao fundo do campo de futebol
Pedra do Cruzeiro, Alto Liberdade, ao fundo do campo de futebol. Crédito: Vinícius Lodi

Alto Liberdade: onde as raízes do futebol estão fincadas na amizade

Conheça a história da comunidade do interior do ES que realiza um torneio de futebol há 40 anos para celebrar a amizade entre as famílias

Publicado em 07/01/2019 às 22h35

“Essa luz, é claro que é Jesus”, cantava o rei Roberto Carlos nos alto-falantes no momento em que o repórter chegava ao campo de futebol de Alto Liberdade, comunidade localizada em Marilândia, Noroeste do Espírito Santo.

Adentrando naquele gramado veio uma cena à mente: ali estiveram futebolistas que conduziam a pelota para o fundo do gol de maneira particular, sonhando serem Zico, Roberto Dinamite, entre outros ídolos, e sendo eles mesmos, alguns com mais dotes, outros com a canela.

Ao balançar a rede, o abraço da comemoração não vinha de uma pessoa qualquer: era do seu familiar mais próximo, do seu melhor amigo que estava ao lado. Os donos do jogo e quem levantariam a taça.

A realidade era boa demais para aqueles e cruel para os derrotados. O legado do sobrenome estava à disputa. Mais importante que isso era a oportunidade dos reencontros.

Aquele era o fim de semana do Torneio da Amizade, competição de futebol que chegara aos 40 anos de existência. O evento é reconhecido pela reunião entre amigos e familiares, sendo muitos deles entre pessoas que por diversos motivos não conseguem se ver com frequência. Em 2018, o domingo, 09 de setembro, foi a data marcada.

A comunidade

A aproximadamente 160 km de Vitória, Alto Liberdade está localizada em uma região cercada por montanhas. Uma delas, a Pedra do Cruzeiro, é considerada um dos principais pontos de visitação do município de Marilândia, e deixa a paisagem do local mais bela.

Em sua completude possui aspectos rurais e urbanos: entre casas, estabelecimentos comerciais, escola, centro comunitário, igreja e unidade de saúde, o plantio de frutas, verduras, legumes e hortaliças. Árvores de todos os portes.

Historicamente, o principal cultivo é o de café. O rio Liberdade passa pela localidade.

História

A comunidade Alto Liberdade tem em muitas de suas tradições uma forte relação com a religiosidade e suas origens italianos, quando imigrantes chegaram na década de 1920 e estabeleceram o povoado.

A páscoa e a missa no topo da Pedra do Cruzeiro são algumas que possuem ligações com o catolicismo. Jogos como a Tômbola e a Moretina, comuns entre os italianos e descendentes, representam ainda hoje este passado.

A união entre as famílias é reforçada pelo Torneio da Amizade, em que os times são organizados por famílias e seus membros. Ao todo, já participaram 31 famílias.

Quem vem de outros municípios revela que é muito bem recebido. É o caso do radialista Marcelo Fiorot, que reside em Linhares, na Região Norte do Espírito Santo, e costuma visitar o povoado todos os anos no fim de semana do campeonato.

“O morador de Alto Liberdade é muito acolhedor e receptivo. Ele abre as portas da sua casa, com muito carinho e atenção. Aqui é um lugar que você pode não ter um parente por perto, mas se você chegar na casa de outra pessoa, ela vai te convidar para pernoitar. É uma comunidade muito unida e irmã ainda”, contou Fiorot.

Os últimos detalhes para a bola rolar

Dias antes da realização do Torneio, membros da comissão organizadora, já trabalham duro nas preparativos. Toda a comunidade é avisada para que as famílias possam montar os times e também para contribuir com os afazeres.

Dentre eles: aparar o gramado, fazer as marcações do campo com a cal, cercar o gramado com cordas, colocar as redes nas traves, limpar banheiros, instalar faixas, entre tantas outras atividades, como a compra de produtos para consumo, cozinhar a comida para o almoço comunitário.

Gilmar Bonna, também conhecido como Gil, faz parte da comissão organizadora e trabalha com a operação de som e revela o amor que tem por ser uma das pessoas que fazem o Torneio da Amizade.

“Como voluntário, eu amo isso aqui. Quando chega o mês de setembro eu já respiro o torneio e já começo a fazer a programação. Eu fico muito orgulhoso quando as pessoas chegam aqui e elogiam o nosso trabalho por fazer parte desta história. Não é por orgulho, é porque eu gosto muito. Eu amo isso aqui. Estou fazendo de coração”, relatou Bonna.

Gil Bonna preparando a mesa de som. Crédito: Vinícius Lodi
Gil Bonna preparando a mesa de som. Crédito: Vinícius Lodi

Na semana anterior ao evento, por conta da falta de chuva e de outras tarefas necessárias, o membro da comissão José Geraldo Smarzaro ia ao campo para molhar o gramado. Em alguns dias chegava às 7h e ia para casa apenas ao anoitecer.

Irmão de Gil, Pedro Bona, ajudou a organizar o Torneio desde o seu início e durante este tempo atuou na comissão e como jogador. Ele, entretanto, teme o futuro da tradição e deseja que mais pessoas jovens participem.

“Gostaríamos de ter pessoas mais jovens. Um menino novo com vontade de trabalhar. Precisamos deles para manter essa tradição viva, porque nós velhos, somos velhos e amanhã ou depois a gente falece e tem que ter alguém”, afirmou Bona.

Pedro Bona trabalhando nos preparativos do Torneio da Amizade e no dia seguinte atuando dentro de campo. Crédito: Vinícius Lodi
Pedro Bona trabalhando nos preparativos do Torneio da Amizade e no dia seguinte atuando dentro de campo. Crédito: Vinícius Lodi

Ouça a primeira parte do Podcast Reunião

Família Casagrande vence em 2018

Nesta edição, 13 famílias disputaram o Torneio: Bertoldi, Boldrini, Bona, Casagrande, Dondoni, Drago, Fiorot, Fornaciari, Galvão, Lorencini, Magnago, Secatto e Venturini.

O time Casagrande, após cinco anos tentando, conquistou o tricampeonato. Na campanha, bateu o Dondoni, campeão do ano passado, no tempo normal. Logo depois passou pelo Fiorot nos pênaltis.

Na semifinal perdia para o Fornaciari, até que um gol contra levaria a disputa para as penalidades. Com muita precisão nos arremates e o goleiro decisivo, ganhou e foi para a final contra o Magnago. Já no fim do dia, apesar do cansaço, as equipes entraram em campo. Novamente nos pênaltis o Casagrande venceu e levou a taça para casa.

Dono da camisa 10, Kaio Casagrande, conta que boa parte de seu time é de Jaguaré, Norte do Espírito Santo, e que participa pela oportunidade de rever pessoas queridas.

“É sempre muito difícil vir aqui pela distância, mas estamos em Alto Liberdade pela confraternização e a possibilidade de estarmos próximos de pessoas que gostamos e que muitas vezes, pela rotina do dia a dia, não conseguimos nos ver com frequência”, relatou Kaio.

Memória do Torneio da Amizade

Os primeiros registros feitos por Dório Magnago, grande incentivador e um dos criadores do evento, foram guardados pela família mesmo após a sua morte há cerca de cinco anos.

Em relatos registrados no site do Torneio da Amizade, o interesse entre os organizadores era de que prevalecesse a amizade e que o dia de futebol seria também de alegria. O nome foi dado de maneira espontânea por Dório quando registrou em seu caderno os placares.

Na primeira diretoria, estavam Dório Magnago, Pedro Bona, Diogo Magnago, Divaldo Lorencini e Ademir Lorencini. Ficaram como suplentes: Deoclécio Magnago e Arcis Drago.

Na primeira edição, participaram as famílias Magnago, Lorencini, Bona, Smarzaro, Bertoldi, Drago e um time misto, formado por integrantes de mais de uma família.

Magnago venceu o Smarzaro na final, com o placar clássico de 3x0.

Documento histórico guardado pela família de Dório Magnago com anotações que deram o nome ao torneio. Há o registro dos placares e estatísticas dos gols. Crédito: Reprodução/Família Magnago
Documento histórico guardado pela família de Dório Magnago com anotações que deram o nome ao torneio. Há o registro dos placares e estatísticas dos gols. Crédito: Reprodução/Família Magnago

Dentre as principais memórias citadas pelos jogadores, estão as finais. Pedro Bona, atuando pelo time Bona, relembra de um campeonato decidido com muita emoção contra o Fiorot em 1984.

“Talvez um fato mais marcante teria sido a final de 1984, quando perdemos nos pênaltis para os Fiorot, quando tiveram muitas cobranças de penalidades”, disse.

Kaio Casagrande relata ter como lembrança os primeiros títulos conquistados, em 2012 e 2013.

Para Marcelo Fiorot, está o vice-campeonato de 2017. “A gente estava tão perto de ganhar de novo depois de todos esses anos… Não aguento mais ser vice”, contou.

Família Fiorot em seu primeiro Torneio da Amizade disputado, em 1984, quando conquistou o seu primeiro título. Crédito: Arquivo pessoal de Marcelo Fiorot
Família Fiorot em seu primeiro Torneio da Amizade disputado, em 1984, quando conquistou o seu primeiro título. Crédito: Arquivo pessoal de Marcelo Fiorot

Regulamento e suas mudanças

Nos primeiros anos, jogadores atuavam por suas famílias e caso perdessem e fossem eliminados, tinham liberdade para entrar em times aos quais possuíam algum vínculo, como o time da família namorada, mesmo que não tivessem o sobrenome registrado em seus documentos.

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No início da década de 1980, as regras para a participação do Torneio foram modificadas. Desta forma, a família que tivesse inscrito algum jogador de maneira irregular não pode jogar pelos próximos dois anos, como penalização. Para não ocorrer confusões, os árbitros seriam neutros, de fora da comunidade.

Confira alguns pontos do atualizado regulamento:

- Para participar, o jogador tem que ter o sobrenome do pai ou da mãe na família que tem ao menos um representante que reside na comunidade há no mínimo seis meses;

- Não importa a idade do jogador, desde criança até senhores, desde que esteja uniformizado, inscrito na lista. As famílias devem mandar as listas para as inscrições. São aceitos no mínimo 08 jogadores;

- Não há restrições de se ter jogadores profissionais, desde que eles tenham o sobrenome. A família tem que ter os uniformes com os nomes escritos.

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A competitividade como estímulo

O discurso de quem participa dentro de campo é de querer vencer, mas o que realmente importa é a confraternização e a reunião de famílias e amigos.

O agricultor José Geraldo Smarzaro jogou pelo Smarzaro e guarda o troféu de vice-campeão de 1978 em casa, com carinho. Porém, acredita que um dos motivos para a equipe não participar mais da competição é por ela não ser boa o suficiente. “O pessoal mais novo não anima. As pessoas envelheceram e não temos mais jogadores bons”, afirmou Smarzaro.

Com o passar dos anos, o Smarzaro não renovou a sua equipe e deixou de participar. Devido o parentesco, muitos foram da família foram jogar pelo Gabriel, que também não se inscreve mais.

Campeão em 2017, o Dondoni, por outro lado, tenta incentivar os jovens para participarem da tradição e manter o time vivo na competição, como ressalta o treinador José Paulo Dondoni.

“De oito anos para cá, nosso time evoluiu muito. Nós estamos educando os jovens para que a família seja bastante unida”, disse Dondoni.

Do lado de fora das quatro linhas, há quem passe boa parte do tempo conversando e não observa o jogo com atenção. No entanto, quem torce e apoia a família quando está jogando gesticula e quase chega a perder a voz.

Torcedoras da Família Venturini acompanhando cobranças de pênalti. Crédito: Vinícius Lodi
Torcedoras da Família Venturini acompanhando cobranças de pênalti. Crédito: Vinícius Lodi

Este é o caso da arquiteta Kamila Drago Bona, filha de Pedro Bona. As famílias Drago e Bona participam do torneio e ela torce para os dois times. “Gosto de torcer, gritar, ficava sem voz sempre no final do torneio. Isso para as duas famílias, a da minha mãe, que é Drago, e a do meu pai, que é Bona. Comemorar gol de um parente é especial”, ressaltou Kamila.

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Participação das mulheres

Questionada sobre a possibilidade de jogar o torneio, Kamila Drago Bona revela gostar muito de futebol e que as mulheres da família brincavam no dia anterior que poderiam entrar em campo caso o time não tivesse os 11 jogadores em campo.

“Quando eu morava na comunidade a gente tinha um time, então eu participava. Se tivesse, a gente cairia dentro. Não sei se daria certo, mas por mim eu participaria sem problema algum”, disse Kamila.

De acordo com o regulamento, apenas homens podem atuar.

Diante disso, as mulheres assumem o protagonismo em diversos setores, como na cozinha, na limpeza e nos caixas do bar ao lado do campo e no centro comunitário, onde no dia do Torneio teve almoço comunitário e na noite de sábado, 08 de setembro, ocorreu um baile.

Recentemente, mulheres têm participado mais próximas do futebol, sendo no registro das súmulas, na comissão organizadora e participam de reuniões da diretoria.

Kamila Drago Bona auxiliando na organização. Crédito: Vinícius Lodi
Kamila Drago Bona auxiliando na organização. Crédito: Vinícius Lodi

Kamila atuou como assistente do produtor de vídeos Lucas Bona Fiorot, que fez os registros o Torneio em fotos e vídeos.

Os homens reconhecem o trabalho duro das mulheres, que pode passar despercebido por muitos, já que não é tão divulgado, conforme afirma Gil Bonna.

“As mulheres são parte fundamental do torneio e quase que são esquecidas. Para a cozinha elas montam uma equipe, mas os preparativos começam até dois meses antes. Elas começam a planejar o tipo de comida que vai ser oferecido no evento, o que foi servido nos anos anteriores. Tem mulher que lava o uniforme da família. As mulheres também ajudam na limpeza do Centro Comunitário, onde é realizado o baile. É um trabalho maravilhoso e eu costumo dizer que essas mulheres são guerreiras”, concluiu Bonna.

O legado do Torneio da Amizade

A organização divulga o dia do Torneio em uma missa na Igreja Católica Imaculada Conceição, padroeira de Alto Liberdade. A comunidade contribui com o pagamento de uma taxa básica para a ajudar nas despesas.

É uma competição feita por integrantes da comunidade e que, portanto, possui a identidade do povo que nela reside.

A convivência e a amizade entre as pessoas é o motivo maior para que ocorram reuniões de família e amigos, além da possibilidade de conhecer novas pessoas todos os anos em setembro e este é o legado para quem comparece. Marcelo Fiorot descreve a experiência de encontrar parentes de outras cidades e estados.

“É gratificante e é proporcionada pelo torneio. Quando acaba, todo mundo se cumprimenta, se abraça, toma a sua cervejinha, o seu refrigerante, come junto e comemora mais um ano de Torneio da Amizade”, completou Fiorot.

A manutenção do espírito esportivo é primordial, segundo Gil Bonna.

“A gente quer que prevaleça a amizade muito mais do que a vontade de vencer a qualquer custo. Por isso que se chama Torneio da Amizade. Queremos que o torneio comece e termine bem”, afirmou Bonna.

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