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Luizane Guedes

"A existência do negro não é só sobre dor"

Doutora em Psicologia e militante do Movimento Negro, ela  fala sobre os impactos provocados pelo racismo estrutural  e defende mais espaço para que o negro tenha voz em assuntos que vão além das questões étnico raciais

Vitória
Publicado em 21/11/2020 às 12h47

No mês marcado pelo Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, questões sobre a negritude no Brasil emergem e revelam experiências focadas em sofrimento, dor e racismo. Para a militante do Movimento Negro capixaba e doutora em Psicologia, Luizane Guedes, a existência do povo negro não deve ser reduzida às chagas históricas da discriminação.

Luizane é servidora pública e atua na área da Assistência Social com atendimentos à população em situação de rua. “A psicologia é historicamente construída a serviço do racismo. Os primeiros testes psicológicos, assim como experimentos ditos científicos no campo da psicologia, eram para embasar estudos que queriam comprovar a superioridade de pessoas brancas”, afirma.

Qual a importância do Dia da Consciência Negra?

O Dia da Consciência Negra é considerado importante especialmente porque possibilita que possamos fazer análises acerca da negritude e de sua inserção nos vários campos da sociedade - pensando aspectos como racismo, igualdade racial, inserção social, econômica, cultural etc. A data nos provoca a pensar como vivem atualmente os negros no país.

Neste mês, surgem espaços para reflexões acerca da negritude no Brasil e, consequentemente, das dores vividas pelo povo negro.  Na sua avaliação, a existência dos homens e mulheres negros pode ser focada por outra perspectiva além do racismo, da discriminação e do preconceito cotidianos?

Ser negro passa por multiplicidades, e não por uma existência homogênea focada no sofrimento, nas dores, no racismo. Obviamente estas questões fazem parte de boa parte de nossa história de vida, uma vez que o racismo perpassa nossa existência, mas não vivemos só disso. A nossa existência não é só sobre dor, e nossa voz pode ser usada para tudo, para todos os campos de existência. Para que isso se torne algo mais real, é preciso, por exemplo, que não sejamos chamados a falar somente sobre questões étnico raciais, pois isso cola em nossos corpos uma linha só focada em questões ligadas às coisas ruins que emergem a partir do racismo.

A pandemia do coronavírus escancarou as desigualdades sociais no Brasil. Assim como acontece no cenário nacional, no Espírito Santo, os negros são as principais vítimas da doença. Por que essa população está no foco?

Somos o alvo em todas as mazelas sociais por conta do racismo estrutural. Acaba que varias ações, falas e situações são naturalizadas de forma que se construa um lugar para a negritude de forma a segregá-la, inferiorizá-la, não dando acesso a direitos, como o que é dado às pessoas não negras. Então teremos pessoas negras sempre no centro dessa segregação - estaremos sempre em desigualdade em termos de direitos e no ápice de listas como desemprego, violência, analfabetismo, ação doenças como a Covid-19, entre outros.

Da mesma forma acontece no quesito  "Violência". Dados do Atlas da Violência 2020 apontam que os jovens e negros são as principais vítimas da violência no Espírito Santo

O corpo negro é visto como descartável na sociedade. Basta observar a comoção quando um “jovem” branco morre - esse corpo não é automaticamente ligado à criminalidade. Cogitam-se varias possibilidades antes disso. Faça a experiência com um corpo negro e terá a dimensão de como esse corpo é rapidamente ligado à criminalidade, ao tráfico de drogas, por exemplo. Corpos negros são vistos como perigosos antes de serem vistos como humanos - a eles não são dados os direitos à defesa, ao luto, ao direito à dignidade. Mães negras precisam, antes de enterrar seus filhos, ficarem sucessivamente provando que eles não eram envolvidos com a criminalidade.

Estamos em 2020.  Os negros são livres no Brasil há 132 anos.  O que falta para que essa população conquiste mais espaços de igualdade nos aspectos sociais que englobam acesso à educação, saúde, segurança, moradia?

Primeiro, precisamos assumir que nosso país é racista, que existem privilégios para o corpo branco, e que não vivemos nessa “democracia racial” constantemente bradada por pessoas, em geral, brancas. Em se assumindo isso, precisamos produzir espaços onde possamos garantir novas possibilidades para pessoas negras, seja no mercado de trabalho, em espaços de poder e decisão, na mídia, e em todos os espaços historicamente negados. Só assim poderemos começar a pensar em igualdade de oportunidades.

De todos os desafios, as mulheres negras enfrentam mais barreiras que os homens negros?

Sim. Somos atravessadas por duas fortes opressões - o racismo, que é estrutural, e a violência de gênero, que faz de nossos corpos duplamente alvo de mazelas diversas. Mulheres negras são as que mais morrem em decorrência da violência doméstica, em decorrência do feminicídio, são as que estão na posição menos reconhecida em termos de recorte salarial, entre tantas outras questões. Gênero e raça vão se interseccionalizar para produzir esse lugar do corpo feminino negro.

No campo da Psicologia, como o racismo estrutural e, consequentemente a discriminação, podem impactar negativamente a vida dos negros?

A Psicologia é historicamente construída a serviço do racismo. Os primeiros testes psicológicos, assim como experimentos ditos científicos no campo da psicologia, eram para embasar estudos que queriam comprovar a superioridade de pessoas brancas. Foram anos a serviço de um projeto político racial em favor da população branca, então esse ranço histórico faz da psicologia um campo de saber ainda elitizado e majoritariamente branco, tanto no que se refere ao perfil dos psicólogos, quando ao acesso ao serviço. É construído para pessoas negras que elas não precisam de psicólogo, seria uma “frescura”, porque pessoas negras são “fortes”. Mais uma artimanha do racismo.

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