Pajé Keretxu Emdey em ritual com o cacique Kara'í Perú na aldeia Tekoa Mirim, em Aracruz
Pajé Keretxu Emdey em ritual com o cacique Kara'í Perú na aldeia Tekoa Mirim, em Aracruz. Crédito: Ricardo Medeiros

A bênção da pajé: por dentro do ritual indígena em aldeia no ES

Reportagem de A Gazeta visitou a aldeia Tekoa Mirim, em Aracruz, e teve a oportunidade de participar de um dos rituais feitos pelos indígenas

Tempo de leitura: 6min

Por volta das 10 horas, o som de um violão ecoa no meio da mata em uma casa de pau a pique e rompe o silêncio de uma pequena tribo às margens do Rio Piraquê-Açu, em Aracruz, no Norte do Espírito Santo. Pouco a pouco, as pessoas que residem na comunidade saem de onde estão e entram no local onde o instrumento musical é tocado. Estamos diante de um ritual indígena da aldeia Tekoa Mirim, uma das 12 que ainda resistem no município.

A construção é escura, conta com bancos de madeira, teto de palha, duas portas, algumas janelas e uma pequena fogueira em um canto, usada para esquentar água ou para dar fogo aos cachimbos com ervas, que começam a ser acesos e tragados pelos guaranis no ritual que se inicia.

De crianças a adultos, todos vão para o interior da construção de pau a pique, a casa de reza da aldeia. Os acordes do violão ganham companhia. O cacique da tribo, Kara'í Perú (Pedro da Silva, em versão na língua portuguesa), de 55 anos, começa a balançar o maracá (chocalho) no ritmo da canção. Dois indígenas mais novos iniciam um cântico e uma dança.

Por dentro de um ritual indígena em uma aldeia do Norte do ES
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Enquanto a música toca, uma senhora entra na casa de reza e se destaca dos demais indígenas pela postura mais séria e expressão facial cheia de marcas do tempo que denotam sua idade avançada. É a pajé Keretxu Emdey (Marilza da Silva), de 85 anos, mãe do cacique e líder espiritual da tribo.

Keretxu Emdey dá algumas tragadas no cachimbo para, segundo ela, espantar o mal. Após isso, inicia uma reza, sendo acompanhada pelos indígenas. Logo depois, pega um tronco de madeira e soca contra o chão de terra da construção, enquanto os sons do violão e do chocalho continuam ao fundo.

A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã guarani Keretxu Endy fumando cachimbo durante ritual. Crédito: Vitor Jubini

O cacique nos explica que, geralmente, os pajés são pessoas mais velhas, que a tribo toda respeita por terem o dom de curar os indígenas.

“Minha avó e minha bisavó eram benzedeiras e passaram para minha mãe. E a minha mãe continua fazendo. Depois disso, a gente tem que aprender com ela e pedir a Deus que uma pessoa fique nesse caminho que ela está fazendo hoje aqui na aldeia. Mas é muito difícil aprender, fazer”, relata o cacique.

Em dado momento, a pajé se levanta e fica em pé olhando o horizonte pela janela. Essa é a hora em que ela diz se conectar com os espíritos. “Eu sinto a força espiritual, quando eles nos enchem para falar. Sentimos em todo o corpo quando entramos em conexão”, conta a pajé.

Keretxu Emdey

Pajé

Eu sinto a força espiritual, quando eles nos enchem para falar. Sentimos em todo o corpo quando entramos em conexão

“Ela fala que, na hora, não sente mais nada. Parece que tem um espírito que está ali, fazendo força com ela. Diz que não sente mais nada. Tem uma pessoa que fala com ela, e ela só está naquilo ali mesmo. E não sabe nada o que está acontecendo no momento. Ela está ali. Tem uma pessoa ali. Parece um espírito fazendo uma força com ela para ter mais força mesmo”, detalha o cacique.

Depois de muitas tragadas no cachimbo e de finalizar a oração, a pajé vai até o quintal e pega algumas ervas para benzer. Para ser benzido, é preciso ter algum objetivo em mente. Dar fim a algum incômodo pessoal ou profissional, por exemplo. Enquanto bate os galhos das plantas contra o corpo da pessoa, ela faz uma reza em guarani com duração de cinco minutos. Se for necessário benzer outra pessoa, é necessário pegar novos galhos e jogar os usados fora.

O Deus a quem o cacique e a mãe se referem não é o mesmo citado em religiões cristãs, mas sim uma divindade ligada a forças da natureza.

“Nós pedimos ao Deus Sol que ilumine a terra, o mundo, a natureza que nós temos. Sem Sol, não vivemos. Pedimos também ao poderoso Céu, à Lua. A cada um, temos um pedido para eles, que iluminem todos os indígenas do Brasil”, conta o cacique.

Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
A anciã guarani Keretxu Endy ao lado do filho durante ritual na aldeia Tekoa Mirim . Crédito: Ricardo Medeiros

Rituais da manhã fazem parte de uma rotina mais privada da aldeia e não costumam ser abertos ao público. Mas, a convite da tribo, a reportagem de A Gazeta pôde acompanhar esse, convocado por Keretxu Endy, para agradecer o dia. Outras cerimônias podem ocorrer a qualquer momento por iniciativa do pajé, que repassa o pedido ao cacique, encarregado de chamar todos da tribo.

“Nós temos rituais com o pajé, um de manhã cedo, a partir das 5h30, 6h da manhã, e também de tarde, a partir das 18h30. Todo mundo entra. Nos unimos para falar, primeiramente, com quem? Primeiramente, com Deus, para que ilumine todas as comunidades da aldeia. E no ritual de mais tarde, diretamente à casa de reza, para que ilumine a andada de cada família que se levanta. Esse vai até umas 22h, 23h. Se for preciso, até amanhecer o dia”, explica o cacique.

Além desse ritual de agradecimento e daqueles fixos que ocorrem de manhã e no fim da tarde, há o de cura.

“Eu consulto nosso Deus, os espíritos de forças para nos dar saúde e tudo mais. Peço para as crianças também. Eu busco a Deus, eu rezo para Deus, porque é Ele quem me ajuda em todo lugar, nos meus cantos, nas minhas danças”, relata a líder espiritual. 

“Nós temos também o ritual à noite. Quando pedimos, o pajé faz para a cura de pessoas que estão doentes, não estão passando bem. Essa cura o pajé faz à noite e tira as coisas ruins, o mal da pessoa”, completa o cacique.

Esses rituais de cura são voltados para tratar enfermidades dos indígenas, mas também atrai brancos em busca de solução para problemas de saúde diversos. 

“Nós temos várias pessoas que vêm aqui dentro procurar cura de alguém da família, alguma pessoa que vem aqui com dor no corpo, pessoa que tem dor de cabeça, toma remédio e o remédio não cura. Então, ela faz benzimento e a pessoa sai bem”.

Em algumas ocasiões, a pajé ainda faz um chá com ervas da aldeia para ajudar no processo.

A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã guarani Keretxu Endy durante ritual na aldeia Tekoa Mirim. Crédito: Vitor Jubini

O ritual é um dos elementos que mais conectam os indígenas à tradição. Em função das dinâmicas do tempo presente, a maior dificuldade dos indígenas mais velhos é passar os costumes aos mais novos, segundo a pajé.

“É por isso que damos conselhos. Falamos sobre não fazer coisas ruins no futuro. Sempre aconselho outras pessoas a seguirem nossa cultura e respeitarem os outros. Peço a Deus para que todos nós vivamos bem."

O cacique diz que a mãe tem o dom para repassar, às gerações mais novas, a importância de seguir a tradição e não cansa de falar para que eles tenham respeito pela cultura. No entendimento dele, é possível seguir a tradição, respeitando os costumes indígenas sem necessariamente abdicar dos avanços advindos da própria evolução do mundo.

“Nós temos internet e veículo na aldeia. É saber usar não fugindo da cultura. A nossa cultura guarani é muito forte no Brasil. Nós estabelecemos para os mais novos os horários em que podem usar a internet. O veículo só pode ser usado para ir à cidade, fazer compras ou levar pessoas mais velhas ao médico."

Algumas características da cultura, no entanto, já não são mais praticadas, como a pesca e a caça. “A mata é pequena. Nós preservamos. Não deixamos os caçadores virem aqui. Nem nós podemos caçar”, afirma o cacique.

Os indígenas também não vivem mais em ocas de palha, como no passado, mas, sim, em casas de concreto e mantêm as construções antigas apenas como forma de lembrar, no presente, como era a vida em outras gerações.

Ritual na aldeia Tekoa Mirim, em Aracruz, Norte do Espírito Santo

Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
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Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
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Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
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Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
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Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
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Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
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Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
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Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
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Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
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Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
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Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena
Keretxu Emdey, Benzedeira indígena. Ricardo Medeiros
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena. Vitor Jubini
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena. Vitor Jubini
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena. Vitor Jubini
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena. Vitor Jubini
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena. Vitor Jubini
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena. Vitor Jubini
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena. Vitor Jubini
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
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A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
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A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena
A anciã Guarani Marilza Silva, Keretxu Endy na língua indígena

Agradecimentos a Mauro Luiz Carvalho/ Karai Arã, pelas traduções do guarani feitas para esta reportagem.  Ele é mestre em Linguística pela UnB e professor da Escola Municipal de Ensino Fundamental Indígena Arandu Retxakã, em Aracruz, desde 2014.

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