Publicado em 13 de maio de 2020 às 10:23
Que o cinema é uma arte em constante movimento, sabemos. Não é de hoje que filmes se adaptam a novas plataformas para chegar aos seus espectadores, tendo se ajustado a televisão, DVD, streaming. Mas talvez seja a primeira vez em que acontece um passo para trás. >
Os cinemas drive-in, que faziam sucesso em gerações passadas, vêm ensaiando uma volta triunfal ao dia a dia daqueles que querem continuar assistindo a filmes fora de casa, mas ainda não podem se aventurar numa sala de exibição tradicional.>
Depois de os EUA observarem que o modelo voltou a fazer sucesso nos últimos meses, iniciativas do tipo vêm surgindo em São Paulo e Rio de Janeiro, e o tradicional Cine Drive-in de Brasília, inaugurado em 1973 e um dos únicos bastiões que remanesciam no país, tem visto um comparecimento impressionante.>
"Sentimos um cinema diferente por causa da pandemia. A gente até estranha essa mudança toda", afirma Marta Fagundes, diretora do complexo brasiliense, que recebe carros no local desde 1978.>
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Se numa segunda-feira normal ela tinha de 30 a 40 carros no drive-in de 400 lugares, hoje tombado como patrimônio cultural, nesta última ela viu entrarem 150 veículos. No primeiro fim de semana após a reabertura, estendido por causa do Primeiro de Maio, ela vendeu 2.800 ingressos e recebeu ligações estupefatas, checando se o número não estava errado.>
"Tivemos uma surpresa com a reação das pessoas, que ficaram às vezes uma hora na fila para entrar", diz Fagundes, explicando que a capacidade do cinema foi reduzida à metade, para garantir distanciamento entre os espectadores.>
Em São Paulo, a rede Cinesystem abriu este mês um complexo de drive-in em Praia Grande, a 71 km da capital, onde a reportagem acompanhou uma sessão de "Nasce uma Estrela", de Bradley Cooper.>
Em todo o caminho da garagem de casa até os fundos do estacionamento do shopping Litoral Plaza, onde foi erguida a tela, a única aproximação humana foi com funcionários que vendiam ingresso na entrada e, depois, serviam pipoca e bebida direto na janela do carro (com equipamentos de proteção como máscaras e luvas).>
O cinema distribui também, num panfleto onde consta o número de WhatsApp que recebe os pedidos da bombonnière, uma orientação para permanecer o tempo todo no carro e, se precisar ir ao banheiro, levar máscara no rosto.>
Está sublinhada ali a necessidade de que a visita seja feita só com pessoas que já estejam no convívio do motorista --ninguém quer, por exemplo, que namorados ou amigos aproveitem a deixa para furar a quarentena.>
Exaurida essa preocupação inicial --a segurança do modelo, afinal, é um atrativo tão ou mais importante que qualquer saudade da tela grande--, vale notar que assistir a um filme de trás do para-brisas é uma experiência peculiar, pela qual a maioria dos mais jovens nunca passaram.>
Desaparece o incômodo com o brilho insuportável do celular do vizinho, mas surgem novos desafios: o inconveniente que deixa o farol aceso e atrapalha a escuridão total; o vidro do carro que embaça no clima úmido (um paninho vem a calhar); a necessidade de manobrar para se meter em um lugar com boa visibilidade.>
O repórter, que chegou em cima da hora, teve que ouvir da acompanhante, "os assentos do meio já estão todos pegos". Mesmo estacionado no canto esquerdo, dava para ver perfeitamente a tela, exceto do banco de trás, onde era preciso fazer contorcionismo para enxergar. Se for, vá em dupla --ou só com filho pequeno.>
Até daria para dizer que as conversas alheias não atrapalham mais, mas é preciso manter o vidro aberto para não sufocar e tem gente que, aí sim, não faz a menor questão de controlar os decibéis.>
Os filmes exibidos no complexo são todos dublados, o que pode ser problema para alguns. Já que no drive-in as letrinhas da legenda podem ficar longe demais para quem tem a vista imperfeita, diz Sherlon Adley, diretor da Cinesystem, optou-se pela dublagem, que chega direto aos ouvidos por uma estação de rádio voltada especialmente para as sessões.>
Então a voz de Lady Gaga, mantida só nas canções do musical, acabou intercalada com uma dubladora de timbre bem mais fino.>
xPor ali também a oferta tem encontrado demanda. No primeiro dia de abertura do drive-in, uma segunda-feira, os 60 lugares da sessão de 21h se esgotaram com antecedência. No primeiro sábado, segundo Adley, as três sessões do dia venderam um total de 348 ingressos a 15 reais (por pessoa, não por carro), e o cinema pretende ampliar o número de exibições na próxima semana.>
Apesar de ter aberto o flanco em São Paulo, a iniciativa do Cinesystem não é a única.>
A Cidade das Artes, na zona oeste do Rio, anunciou que vai abrir antes do fim do mês uma estrutura com capacidade para receber 150 carros. A Dream Factory, especializada em eventos de grande porte, negocia com oito capitais para montar o que o diretor-executivo da empresa, Claudio Romano, define como um "grande parque de entretenimento" em modelo drive-in, com todo tipo de espetáculo.>
A conversa está avançada com São Paulo, Rio e Belo Horizonte, mas não há previsão de abrir nada antes do fim de junho, para garantir que o pico do Covid-19 já terá passado. "Abrir agora vai totalmente contra as medidas de isolamento", diz Romano. "Sabemos que é importante, hoje, as pessoas ficarem isoladas. Não queremos fazer nada que as tire de casa.">
A opção drive-in, como se vê no plano da empresa, não precisa ficar restrita ao cinema. O ator Robson Catalunha, do grupo Os Satyros, tem um plano de realizar apresentações de teatro, música e dança vistas de dentro de carros, em Sorocaba (SP), sua cidade-natal, em parceria com outros artistas de lá.>
O projeto era começar no último sábado, mas também houve receio de que as pessoas fossem escapar da quarentena num momento em que o número de mortes só sobe. Agora, afirma ele, pretendem transformar a ideia num edital público, que sirva para dar suporte a quem trabalha com arte e está sem renda. "Não dá para deixar de olhar para a classe artística como um todo", diz.>
Na Alemanha, jovens saudosos de festas fizeram uma rave em que as pessoas participavam de dentro de seus carros. Nos EUA, mesmo igrejas têm feito missas para motoristas no espaço do estacionamento.>
O governador Andrew Cuomo, de Nova York, anunciou na segunda um plano de relaxamento ainda bem temeroso, mas que fazia questão de permitir expressamente a reabertura de drive-ins. E até distribuidores têm se adaptado. A Amazon anunciou que a pré-estreia de seu thriller "The Vast of the Night" vai acontecer em cinemas drive-in dos Estados Unidos antes de entrar no seu serviço de streaming, dia 29.>
O futuro do cinema, como de toda a cultura, ainda é mais do que incerto. Mas para quem pode, talvez a solução seja ir de volta para o passado.>
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