Publicado em 23 de abril de 2020 às 14:10
Quando ainda começava a ficar claro quão grave seria o impacto do novo coronavírus no cotidiano de todos, o governador de São Paulo, João Doria, foi à TV em meados de março ler num papel uma lista de orientações, entre elas a de que os cinemas ficassem fechados por um mês. >
Todos escutaram, as salas fecharam, esses dias se passaram -mas ninguém sabe quando as portas vão abrir de novo. Nem como.>
"É como se fosse um casal que se separou e vai voltar", reflete Adhemar Oliveira, diretor do circuito de salas Itaú, sobre a relação do público com esses espaços. "Tem que ter a sabedoria de que a coisa não vai ser a mesma de antes.">
Nesta semana, a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, decidiu destinar recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, que é financiado pela própria indústria, para abrir linhas de crédito como meio de salvaguarda às empresas da área, com atenção especial para as exibidoras. O montante total de empréstimos, ainda não liberados, deve chegar a R$ 400 milhões.>
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É um respiro significativo para um dos primeiros setores a suspender totalmente suas atividades durante a pandemia -já que a base do negócio é aglomerar gente dentro de um espaço fechado-, mas ainda paira sobre o cinema uma enorme indefinição.>
Quando as salas reabrirem, não se sabe se prevalecerá no público o medo de multidões ou o desejo de voltar correndo para a sala escura. Talvez um misto estranho dos dois.>
Ninguém tem certeza de nada. André Sturm, dono do Petra Belas Artes, diz esperar uma reabertura em maio -sua fonte é "única e exclusivamente o otimismo". Oliveira, do Itaú, tem consciência de que a reativação completa "será um processo demorado". Jean Thomas Bernardini, diretor do Reserva Cultural, está trabalhando, por segurança, com outubro ou novembro.>
No plano de reabertura delineado pelo presidente Donald Trump para os Estados Unidos, os cinemas estavam lá no fim da linha, sem cronograma definido.>
A verdade é que não dá para cravar nada a caneta por aqui também, porque além da paúra dos espectadores com o contato alheio e da necessidade de seguir as orientações de saúde pública, tudo depende muito da distribuição de filmes. Os grandes estúdios em Hollywood têm adiado ou suspendido suas estreias, e o período do verão americano ficou mirrado em lançamentos até agosto, pelo menos.>
Sturm diz estar certo de que o Belas Artes reabrirá com a programação que estava em cartaz antes da quarentena, e outros cinemas de arte podem se virar bem atraindo cinéfilos com mostras temáticas. Mas não há opções tão óbvias para empresas maiores e mais comerciais.>
É preciso ter em mente que pode ser mais barato para um cinema ficar fechado do que arriscar abrir sem público, voltando a ter mais gastos de infraestrutura e pessoal, sem retorno equivalente.>
Há diferenças essenciais, ainda, em como o fechamento das portas afeta a estrutura de uma grande rede internacional, como a americana Cinemark, que tem 640 salas em 17 estados brasileiros, e um cinema de arte como o Reserva Cultural, que tem dois endereços, em São Paulo e no Rio de Janeiro.>
"O cinema de rua é mais frágil, mas o público cinéfilo talvez seja o primeiro a voltar a frequentar", diz Bernardini, do Reserva. "No nosso tipo de cinema, tem uma média de público relativamente fiel. Isso pode ser uma vantagem na retomada.">
O sentimento é compartilhado por Fabio Lima, diretor da agregadora de vídeo sob demanda Sofá Digital, que vê uma empatia maior com o cinema de rua. "Num mundo pós-coronavírus, tem mais chance de essas salas conseguirem um patrocínio, um benefício público ou operar abaixo da capacidade do que uma rede grande, que se movimenta como um transatlântico e tem muito mais dívidas.">
Nos Estados Unidos, já se fala abertamente sobre a possibilidade de falência da principal exibidora, AMC, que detém 634 complexos de cinema na América do Norte e acumula US$ 4,9 bilhões em dívidas, cerca de R$ 25,7 bilhões, segundo a revista Variety. A empresa vem tentando contornar a situação com a venda de dívidas.>
Grandes franquias que operam no Brasil, como a Cinemark, a Cinépolis, com 422 salas, e a Kinoplex, com 271 salas, não quiseram falar sobre seus planos. Mas o medo de quebradeira quando a receita vai a quase zero é comum em negócios de qualquer setor.>
Por isso, as salas têm sido criativas. Para compensar o fechamento de seus nove complexos de cinema, o grupo Playarte passou a entregar, via Rappi, produtos da bombonnière como pipoca gourmet, pizza e churros. O Cinemark fez parceria semelhante depois com o iFood.>
O Belas Artes, que já tem a cervejaria Petra ajudando nas finanças, criou uma vaquinha online que já bateu a meta original de R$ 50 mil, com mais de 600 contribuições individuais -o crowdfunding continua aberto até 5 de maio.>
E o Reserva Cultural se vê pensando em recorrer a patrocínios, algo a que sempre foi resistente -por isso, quem entra no cinema da avenida Paulista vê um pequeno shopping autossuficiente, com livraria e restaurante, que equilibram as contas.>
Esses tempos de quarentena são promissores para o streaming, segundo Fabio Lima, do Sofá Digital, mas não é como se o frequentador de cinema fosse passar a ficar em casa, trocando as telonas pela telinha de vez -porque é provável que esse espectador já equilibrasse os dois hábitos, do cinema e do consumo doméstico.>
Na verdade, o contexto favorece a formação de um novo público, diz ele. "Esse momento acelera a educação de gente que estava no limbo, que não ia ao cinema e estava órfã do DVD. Essa pessoa vai melhorar a sua infraestrutura e controlar melhor o orçamento para o serviço sob demanda.">
Saíram na frente, argumenta Lima, os exibidores que souberam surfar junto no streaming. Num momento como o de agora, em que seu principal produto fica fechado, eles ainda podem manter não só alguma receita como o vínculo com seu público.>
"O mundo do audiovisual está em dois extremos", diz Laís Bodanzky, cineasta e presidente da Spcine, empresa pública de cinema de São Paulo. "As salas de exibição e as filmagens foram totalmente atropeladas, e o espaço de exibição digital está indo bem como nunca, porque passou a ser uma ferramenta fundamental nessa reclusão.">
Ela diz ter se impressionado com o grau de aumento da procura pelo serviço de streaming Spcine Play neste período de quarentena. Em um mês, houve 155% mais acessos do que em todo o período acumulado desde a abertura, em outubro de 2018 -é preciso lembrar que o conteúdo da plataforma se tornou 100% gratuito durante a quarentena, e Bodanzky pretende que isso se estenda até o fim do ano.>
A plataforma Petra Belas Artes à la Carte, que também abriu seu catálogo até o fim do mês, observou uma entrada de 50 mil inscritos nos 15 primeiros dias de abril. Já a Netflix ganhou quase 16 milhões de assinantes no mundo todo no primeiro trimestre.>
Mas, mesmo com a alternativa de ver filmes em casa, Bodanzky não minimiza a importância dos cinemas. "Não que a minha sala não seja confortável, mas minha atitude para o filme no cinema é mais completa.">
Está difícil ver a luz no fim do túnel e, por ora, todo mundo está tateando no escuro. Mas Bernardini sublinha que "fechar uma tela, independentemente de perder dinheiro, é uma perda para o país".>
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