Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

"Um Crime em Comum": filme da Netflix discute culpa e privilégios

Coprodução Argentina, Brasil e Suíça, o filme dirigiro por Francisco Márquez mistura elementos de drama social e thriller psicológico para discutir culpa e privilégios

Vitória
Publicado em 27/01/2021 às 23h21
Atualizado em 27/01/2021 às 23h21
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Filme "Um Crime em Comum", disponível na Netflix. Crédito: Vitrine Filmes/Divulgação

A esquerda brasileira convive com a pertinente crítica de ter se tornado acadêmica demais a ponto de se afastar das classes menos favorecidas. Com quadros formados por professores e intelectuais, a teoria anda em alta, a prática, nem tanto. Os motivos para isso seriam base de outro texto, mas “Um Crime em Comum”, do argentino Francisco Márquez, trata do tema com pouca sutileza e, até por isso, de forma dura.

O filme que chega à Netflix nesta quinta (28) acompanha Cecilia (Elisa Carricajo), uma professora de Sociologia com uma boa condição de vida. Divorciada e com um filho adolescente, conta com a ajuda de uma empregada em casa, Nebe (Mecha Martinez) e a trata “como parte da família”. Cecila é uma mulher engajada, uma professora com boa retórica e adorada pelos alunos, mas pouco conhece da vida fora da academia.

Numa noite chuvosa, Kevin (Eliot Otazo), filho de Nebe, bate à porta, mas Cecilia, assustada, não abre. Quando o jovem aparece morto dois dias depois, ela se pergunta se poderia ter feito algo para mudar o destino de Kevin - teria ela sacramentado a morte do filho de sua empregada ao não abrir a porta?

“Um Crime em Comum” é um filme sobre culpa, não apenas a de Cecilia, mas também a de Francisco Márquez. “Eu não sabia dessa crítica à esquerda brasileira, mas pode ser uma compreensão do filme”, explica, em chamada de vídeo, antes de completar: “Eu passei a questionar o meu comportamento e o dos meus iguais diante da sociedade. Como intelectuais e artistas, voltamos nossos olhares para as camadas mais populares. Acreditamos que problematizar a situação é ajudar a torná-la visível, mas e se a realidade demandasse ações ao invés de palavras? E se algo nos forçasse a sair de nosso conforto e nos envolver diretamente?".

Francisco Márquez

Diretor de "Um Crime em Comum"

"Como intelectuais e artistas, voltamos nossos olhares para as camadas mais populares. Acreditamos que problematizar a situação é ajudar a torná-la visível, mas e se a realidade demandasse ações ao invés de palavras? E se algo nos forçasse a sair de nosso conforto e nos envolver diretamente?"

A morte de Kevin coloca Cecilia numa espiral de culpa e paranoia; ela passa a ouvir sons à noite, a achar que está sendo perseguida e observada até por forças sobrenaturais. Esse aspecto confere a “Um Crime em Comum” um clima de thriller psicológico. Francisco optou por um formato de tela 4:3, ou seja, quase quadrado, para fazer com que o espectador se sinta tão incomodado quanto a protagonista. “Ela está presa ali, presa naquela culpa. Achei que o formato de tela reforçaria isso”, diz Francisco.

“Um Crime em Comum” mostra uma Argentina mais latina e bem menos europeia e glamourosa. Bem mais social e realista do que boa parte do cinema argentino que faz sucesso por aqui, o trabalho de Francisco Márquez se aproxima, em momentos, do de Pablo Trapero (“Abutres”, “Elefante Branco”). O recorte, segundo ele, não tem a ver com a crise pela qual passa o país nos últimos anos, mas sim com uma representação realista: “sempre existiram essas duas argentinas”, afirma.

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Filme "Um Crime em Comum", disponível na Netflix. Crédito: Vitrine Filmes/Divulgação

O diretor conta que essa representação de um lado mais pobre da Argentina fez com que o filme tenha interpretações diferentes por onde passa. Na Alemanha, exibido no Festival de Berlim, muita gente saiu das salas dizendo que aquele filme não representava a Argentina. “Eles não acreditavam naquele lado que nunca tinham visto. É como mostrar o lado pobre de Paris, pouca gente mostra”, lembra. Já em países latinos, o filme ganha relevância, pois “as pessoas se reconhecem nele”.

“Um Crime em Comum” é um filme lento que se sustenta demais sobre a grande atuação de Elisa Carricajo - seu ritmo, porém, pode incomodar. A narrativa busca se aprofundar no drama psicológico e leva a protagonista ao limiar da culpa e da sanidade, mas o faz deixando de lado outras tramas que poderiam ser exploradas. A morte de Kevin é um catalisador da culpa, mas nunca uma subtrama a ser aprofundada.

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Filme "Um Crime em Comum", disponível na Netflix. Crédito: Vitrine Filmes/Divulgação

Se por um lado essa escolha narrativa coloca a dúvida na cabeça de Cecilia, se ela poderia ou não ter feito algo para evitar a morte Kevin, por outro, tira o foco da violência contra os menos favorecidos, mas talvez seja justamente a intenção: analisar a culpa dos privilegiados sobre o sofrimento dos que eles dizem defender.

A problematização é: Cecilia pode, de certa maneira, se ver livre da culpa e enfim se sentir leve, mas Kevin continua morto. O alívio dos privilegiados representa um alívio para o espectador, mas o problema social continua ali. “Um Crime em Comum” acaba não explorando esse problema.

O filme de Francisco Márquez tem uma alternância de gêneros que dá estilo ao filme. O drama social dá espaço para o thriller e ambos se perdem no meio.  Vale a ressalva de que essa sensação de confusão pode servir justamente para colocar o espectador na efervescência mental de Cecilia, como na sequência em que a protagonista se perde por vielas. Ao fim, apesar levantando questões interessantes, “Um Crime em Comum” pode não funcionar com quem não estiver disposto a refletir sobre sua premissa.

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