Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

"Sombras da Vida", na Netflix, é o melhor filme que ninguém viu

Lançado em 2017 em circuito pequeno, filme chega ao catálogo do serviço de streaming com Casey Affleck, Rooney Mara e uma comovente história sobre luto, legado e amor

Publicado em 01/07/2020 às 20h42
Atualizado em 01/07/2020 às 20h42
Filme
Filme "Sombras da Vida". Crédito: Netflix/Divulgação

Não tenho o costume de escrever sobre filmes que não sejam lançamentos, mas no caso de “Sombras da Vida” abrirei uma exceção. Lançado no meio de 2018 por aqui, o filme dirigido por David Lowery teve pouquíssima divulgação e foi assistido por pouca gente mundo afora. Antes praticamente escondido no catálogo do Amazon Prime Video, o filme agora ganha uma nova chance de ser visto na Netflix, serviço mais popular e que “oferece” mais suas novidades ao público.

“Sombras da Vida” é um drama com elementos fantasiosos - como diz seu título original, “A Ghost Story”, trata-se de uma história de fantasmas. De cara conhecemos o casal formado por Casey Affleck e Rooney Mara, identificados apenas como C e M, e os acompanhamos pouco antes dele morrer em um acidente de carro. Assim que ela reconhece o corpo do marido e deixa a sala do necrotério, o fantasma se levanta; um fantasma clássico mesmo, daqueles com lençol e buracos para os olhos. Ele então volta para o único lugar possível, a casa onde morava. Lá, permanece acompanhando o luto da viúva e a assistindo seguir com a vida sem ele ao seu lado.

Um dos aspectos mais legais de “Sombras da Vida” é a maneira como o filme usa a passagem de tempo. Não sabemos exatamente quanto tempo se passa entre um ou outro acontecimento, mas percebemos as mudanças, algumas de maneira sutil, outras, nem tanto. O filme é silencioso e intimista, passando ao espectador uma impressão de voyeurismo - boa parte do tempo, nós, assim como o fantasma, apenas observamos, e Lowery faz questão de reforçar esse aspecto com takes longos de câmera fixa, como se estivéssemos parados ali enquanto assistimos a Rooney Mara comendo uma torta, por exemplo. Ao mesmo tempo, no terceiro ato, o diretor acelelera seus takes e, consequentemente, sua narrativa.

Lá pela metade de seus 92 minutos, “Sombras da Vida” ganha novos contornos e ares ainda mais poéticos e reflexivos. A vida segue e somos levados a uma viagem temporal; pessoas vão e vem naquela casa, o fantasma permanece ali, à sua maneira, observando. Por quanto tempo mais? Pela eternidade? Enquanto se lembrarem dele? C era um compositor, será que ele permanece vivo enquanto seu legado permanecer, enquanto ouvirem suas músicas?

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Filme "Sombras da Vida". Crédito: Netflix/Divulgação

“Sombras da Vida” discute o legado, a vida e as relações interpessoais. O quanto é para sempre? O filme realizado com US$ 100 mil dólares é ousado em sua simplicidade - ele pega um ator que acabara de vencer o Oscar (“Manchester by the Sea”) e o cobre com um lençol durante a maior parte da projeção. Mesmo assim, o fantasma é o fio condutor óbvio; seu estado de espírito se reflete em sua postura, na maneira como age com o mundo que o cerca. Esse trabalho é reforçado pela câmera, que confere grandiosidade ou intimismo ao ambiente e ajuda o espectador a sentir o que o fantasma "sente", e pela brilhante trilha sonora de Daniel Hart.

O fantasma do filme de David Lowery é o que resta de nós após a morte. A discussão do que exatamente seria isso é íntima, com diversas interpretações e sem uma grande verdade. O roteiro apresenta dicas que mostram um pouco a relação dos personagens e se permite gastar tempo para construir o relacionamento do casal com momentos simples.

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Filme "Sombras da Vida". Crédito: Netflix/Divulgação

Há também aspectos técnicos interessantes, como o fato de o fantasma ser sempre filmado em frame rate diferente do resto, mais acelerado, dando a ele uma sensação de não-pertencimento e causando estranheza quando visto interagindo com o ambiente. Lowery também opta por um aspecto 1:33.1 (ou 4:3), ou seja, o filme se passa em um quadrado e transmite o sentimento de um confinamento, como o fantasma preso à casa, àquela história.

“Sombras da Vida” é surpreendentemente profundo em sua simplicidade, tratando do luto e de suas etapas de superação com delicadeza. É nos detalhes que o filme cresce, no bilhete deixado por M, na memória, na música composta por C... O filme pode parecer esquisito ou “cult” demais, mas ele é apenas um convite para a contemplação. A explicação do que aconteceu em tela existe, mas vai depender da leitura de cada um. É na subjetividade da arte que reside sua beleza, e é na compreensão de cada um que reside o encanto do filme de David Lowery.

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