Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

Por que "Better Call Saul" é melhor que "Breaking Bad"?

Derivada da popular "Breaking Bad", "Better Call Saul" chega ao fim com uma aula de narrativa e desenvolvimento de personagens ao longo de seis temporadas

Vitória
Publicado em 16/08/2022 às 17h30
Série
Série "Better Call Saul", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

O final de “Breaking Bad” é um dos grandes finais da história das séries. A conclusão para as jornadas de Walter White e Jesse Pinkman é totalmente condizente com tudo o que foi mostrado pela série em suas cinco temporadas. Motivado pela raiva e pela doença, Walter fez suas escolhas e se afundou na personalidade de seu Heisenberg, mas Jesse era uma figura trágica sobre quem recaia o peso de cada virada do texto. É nessas viradas que fica claro que é Jesse o coração da série - enquanto Walter se transforma em raiva, Jesse se afunda na dor. Mesmo longe de ser um sujeito perfeito, o personagem de Aaron Paul é um cara decente, a bússola moral e o arco de redenção que acaba justificando a existência de “El Camino”, filme-epílogo da série.

Essa experiência satisfatória de uma montanha-russa de emoções meio caótica de “Breaking Bad” foi o que fez com que eu sempre visse o spin-off “Better Call Saul” com ressalvas. Após a estreia da série, apesar de uma linguagem parecida garantida pela estética de Vince Gilligan e Peter Gould, era fácil perceber não se tratar da mesma criatura - nem sequer era Saul Goodman quem víamos em tela, mas Jimmy McGill (Bob Odenkirk) às voltas com a condição do irmão, o início da carreira como advogado e o relacionamento com Kim Wexler (Rhea Seehorn).

“Better Call Saul” aos poucos se conecta com “Breaking Bad”, mas não é esse o motivo de seu sucesso até meio inesperado. A história da transformação de Jimmy McGill em Saul Goodman é um estudo de personagem que não tem pressa em promover o caos; a narrativa é lenta e a princípio até aparenta gastar tempo demais com arcos pouco interessantes e personagens que pouco acrescentam. Ninguém queria saber de Howard Hamlin (Patrick Fabian), Nacho Varga (Michael Mando) ou Kim, o povo queria era mais tempo de tela para Mike (Johnathan Banks) e Gus Fring (Giancarlo Esposito), mas a série logo construiu um universo próprio e riquíssimo.

O texto de “Better Call Saul” é muito inteligente no desenvolvimento dos personagens; Jimmy e Kim se transformam com o tempo e também logo se afastam da dinâmica Walter x Jesse - ao final do último episódio, a série pode até ser entendida como uma grande história de amor entre os dois protagonistas. Potencializada pela atuação de Bob Odenkirk, a série também constrói bem as tensões em relações aparentemente normais, mas com sentimentos reprimidos sempre prontos para explodir.

Com o destino de alguns personagens já conhecidos por quem viu “Breaking Bad”, “Better Call Saul” nos leva a conhecê-los melhor. A série tem o mérito de aproveitar o que funciona na história de Walter White e Jesse Pinkman para criar uma narrativa com novidades, mas também com um conforto gerado pela estrutura familiar como a breve introdução de cada episódio, os takes longos, os sons do deserto, o estilo de fotografia e a trilha sonora de Dave Porter.

“Better Call Saul” tem em seu protagonista um personagem que faz valer a série. Jimmy/Saul é muito humano, um sujeito sempre menosprezado e que guarda rancor de cada pessoa que o menosprezou. O “surgimento” de Saul Goodman é justamente uma resposta a isso, uma necessidade de bater de frente com todos e mostrar ser tão bom quanto eles em algo - ao pouco se importar com o limite ético, Saul se torna um herói de pequenos bandidos, sim, mas também dos invisíveis.

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Série "Better Call Saul", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

Ao contrário de Walter White, Saul Goodman não tem uma doença, ele é movido puramente pelo ego, sempre se convencendo de não estar fazendo mal a ninguém. A última temporada de “Better Call Saul” é ótima justamente ao quebrar essa narrativa. O último episódio traz Saul e outros personagens lidando com arrependimentos, mas o protagonista inicialmente não parece se arrepender.

Talvez seja essa construção que confira ao episódio final ares mais poéticos, ampliando os arcos em preto e branco, e nada caóticos - a segunda parte da temporada final deixa o caos de lado ao investir ainda mais no desenvolvimento de “Better Call Saul” no pós-”Breaking Bad” e como uma história de amor entre Jimmy e Kim. É o desprezo da única pessoa que sempre esteve ao seu lado que faz Jimmy abraçar definitivamente a inescrupulosa persona Saul Goodman.

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Série "Better Call Saul", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

O episódio final traz esse embate entre Jimmy e Saul, entre o amor e o rancor, para fechar o arco de redenção ou de total perda de humanidade. Kim tem sua redenção ao se livrar dos demônios de toda a jornada vista na série, mas Saul não parece disposto a tal, o que fica claro na cena em que algo sobre ela lhe é revelado. É neste ponto também que vemos o amor de Jimmy por Kim no olhar de Bob Odenkirk.

E para os fãs de “Breaking Bad”, os encontros estão ali de forma orgânica e alguns até surpreendem com a função de tornar Saul um personagem menos atrativo aos nossos olhos, conferindo a ele o peso das escolhas. O texto funciona também para ressignificar alguns arcos da série de Walter e Jesse tornando-os até mais dramáticos, como, por exemplo, a morte de Mike.

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Série "Better Call Saul", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

Ao final de “Better Call Saul”, entendemos a existência de Saul Goodman e o que o levou até o personagem que conhecíamos. No entanto, a série não romantiza seu protagonista - os tempos mudaram e a figura do homem anti-herói não é mais tão aceitável como foi em “Breaking Bad” e, previamente, em obras como “Mad Men” e, claro, “Os Sopranos”.

“Better Call Saul” não justifica os atos de Saul, não traz uma doença incurável, uma necessidade de deixar algo para a família ou algum senso torto de justiça. Saul é fruto do rancor, da frustração e da ganância de Jimmy, um sujeito sempre posto à margem da sociedade que finalmente resolveu operar à margem da legalidade. Tal como a vida, a série traz histórias cheias de nuances, sentimentos palpáveis e complexidades com as quais é mais fácil se relacionar.

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