Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

"Matrix Resurrections" se garante na ousadia de um filme autoral

Cheio de metalinguagem e ação espetacular, "Matrix Resurrections" traz de volta Neo e Trinity em uma história de afeto em meio aos algorítimos do cinema

Vitória
Publicado em 23/12/2021 às 02h08
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Filme "Matrix Resurrections". Crédito: Warner/Divulgação

O primeiro “Matrix”, lançado em 1999, é um dos filmes mais importantes da História do cinema. Goste ou não de ficção científica, ou de filmes de artes marciais e/ou ação, o filme das irmãs Lilly e Lana Wachowski influenciou tudo o que veio depois dele. A questão é que “Matrix” não foi só um filme, foi o epítome de uma época de transformações potencializada pela popularização da internet, a estética da cultura clubber, a música eletrônica/industrial e tantas outras marcas.

Além disso, o filme de Neo, Trinity e cia. também tornou famoso o estilo de ação de Chad Stahelski, dublê de Keanu Reeves em cena que, a partir de “Matrix Reloaded”, passou a coordenar toda a equipe de artes marciais. Mais tarde, ao lado do também dublê David Leitch, que integrou a trupe de “Matrix” a partir do segundo filme, Stahelski se lançou na direção da franquia “John Wick”, considerada hoje também um ponto de virada no cinema de ação.

O filme de 1999 ainda hoje é muito bom, mas suas continuações, com excesso de computação gráfica e um didatismo quase insuportável, não foram tão bem recebidas. Agora, 18 anos depois, “Matrix Resurrections” nos leva de volta à matrix de uma forma interessante - o novo filme é uma soft-reboot, como acontece com todas as grandes franquias retomadas após algum tempo (“Star Wars”, “Jurassic Park”, “Star Trek”, “Ghostbusters”, entre outros), mas é também uma continuação que faz sentido e na qual ex-protagonistas são essenciais e não um afago aos fãs.

“Matrix Resurrections” é um festival de metalinguagem. Desde a cena que abre o filme, facilmente identificável, o texto se autorreferencia com frequência, o que pode incomodar um pouco. O roteiro de Lana Wachowski dá vida a um filme de excessos intencionais, mas eles quase sempre se justificam. Há, por exemplo, vários breves flashbacks para lembrar o espectador de acontecimentos passados e ambientá-lo não apenas na trama, mas também na metalinguagem.

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Yahya Abdul-Mateen II em "Matrix Resurrections". Crédito: Warner/Divulgação

O primeiro ato do filme é muito familiar tanto para o espectador quanto para Neo/Thomas Anderson (Keanu Reeves), um premiado desenvolvedor de jogos que criou uma popular trilogia de jogos chamada, quem diria, “Matrix”. O texto usa o desenvolvimento de um possível quarto jogo como um óbvio paralelo para a pressão da Warner sobre as Wachowski para novos “Matrix”. A piada funciona, mas não é sempre assim em “Matrix Resurrections”.

Aos poucos, a narrativa entrega os paralelos, o 'quem é quem' nessa nova matrix, e tudo começa a mudar quando Neo se depara com Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II), que tenta novamente tirar o escolhido do sistema. Tal qual “Matrix”, o filme, mudou tudo, Neo também mudou toda a existência naquele universo e se tornou uma lenda, uma história estudada por especialistas.

Essa caracterização de Neo como um salvador, como alguém que transformou vidas, é antiga e justifica, por exemplo, a adoração do filme por cristãos que enxergam no protagonista diversos simbolismos religiosos. Ao longo das últimas décadas, a pílula vermelha, que traria a verdade ao personagem, foi usada por religiões e até pela extrema-direita como um símbolo de revelação - tudo, claro, bem distante do imaginado pelas Wachowski.

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Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss no filme "Matrix Resurrections". Crédito: Warner/Divulgação

É fácil identificar em “Matrix Resurrections” os reflexos da mente de sua autora. Lana hoje afirma que o primeiro filme era sobre “aceitação e transição de gênero” - tanto ela quanto sua irmã, Lily, não haviam se identificado como mulheres trans à época. Ainda assim, o texto trazia várias questões sobre construção de identidade, o que ganha ainda mais força no novo filme. Em “Resurrections”, entendemos que toda a jornada do herói não era apenas sobre o personagem de Keanu Reeves, mas também sobre a de Carrie-Anne Moss, como se Neo e Trinity fossem partes de uma identidade em construção, se transformando, o que fica claro no terceiro ato.

“Matrix Resurrections” é um filme de autora, algo raro no cinema atual, mas é também um blockbuster em sua essência. Dependendo menos de computação gráfica para as cenas de ação, o filme traz efeitos práticos sempre que possível. O já citado ex-coordenador de lutas Chad Stahelski tem até um papel no filme, mas faz falta na parte técnica.

Com Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss na casa dos 50, foi necessário adaptar suas cenas de ação - Neo usa muito menos kung-fu, por exemplo, com as coreografias mais centradas nos membros superiores e na pura sincronia de movimentos, com menos peripécias com os atores pendurados por fios. Com isso, quem brilha é Jessica Henwick, ótima como Bugs, quase uma representante do público na trama, e uma atriz que sai bem em combates físicos desde quando era a única a se salvar do desastre "Punhos de Ferro", da Netflix/Marvel.

O “novo” Morpheus tem uma premissa interessante, mas pouco desenvolvida e um tanto cômoda. Interpretado por Yahya Abdul-Mateen II com um tom quase de galhofa, mas ainda assim cheio de reverência, o personagem é bem diferente daquele que conhecemos há duas décadas. Completando o elenco de coadjuvantes, Neil Patrick Harris é ótimo como o analista e Jonathan Groff dá um tom cômico ao Agente Smith, que parece estar ali como esse alívio, mas é desnecessário à trama.

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Jessica Henwick no filme "Matrix Resurrections". Crédito: Warner/Divulgação

Mas “Matrix Resurrections” não é perfeito, longe disso. As piadas de metalinguagem perdem um pouco da força quando percebemos que todo o filme é uma autorreferência. Ainda, assim como no segundo e no terceiro filmes, “Resurrections” é expositivo demais ao explicar tudo o que aconteceu, com personagens explicando para Neo todas as novidades daquele universo; algumas cenas funcionam bem, como as com Morpheus, Bugs e a tripulação da nave, mas outras, como toda a sequência do encontro com Niobe (Jada Pinkett-Smith) é completamente desnecessária - a maquiagem para envelhecer a atriz beira o humor involuntário.

“Matrix Resurrections” é um filme que requer uma boa vontade do público; é necessário querer gostar dele e embarcar na mente de Lana Wachowski ao invés de destacar apenas seus pontos negativos. Como história de amor, funciona muito bem destacando o calor humano em meio às máquinas. Da mesma forma, é muito interessante como uma ficção científica cheia de metáforas sobre prisões, físicas e virtuais, individualidade e livre arbítrio.

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Neil Patrick Harris no filme "Matrix Resurrections". Crédito: Warner/Divulgação

Ao fim, é ótimo perceber que “Matrix Resurrections” ousa pegar a fórmula de blockbusters e fazer dela uma das piadas de seu texto. Lana Wachowski oferece um afago à indústria, que ansiava por um novo “Matrix”, mas o faz com suas regras, com um filme autoral que reflete suas ideias e suas visões de mundo e tem em suas (várias) imperfeições talvez o seu aspecto mais humano em um mercado de produções que parecem feitas por algoritmos.

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