Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

"La Jauría", da Amazon, é um grito contra a violência de gênero

Inspirada em um caso de estupro coletivo na Espanha, série chilena "La Jauría" tem pegada policial e um poderoso discurso contra a violência contra a mulher

Vitória
Publicado em 05/02/2021 às 14h07
Atualizado em 05/02/2021 às 14h07
Série chilena
Série chilena "La Jauría", do Amazon Prime Video. Crédito: Amazon/Divulgação

Em 2016, na cidade de Pamplona, na Espanha, durante as comemorações das tradicionais Festas de São Firmino, um grupo de cinco homens, entre os quais um militar e um guarda civil, sequestrou uma jovem e a estuprou. O crime foi filmado e divulgado em um grupo de WhatsApp chamado La Jauría.

O caso ficou conhecido como “La Manada” e cada um deles foi condenado por “abuso sexual”, com pena de nove anos de reclusão. A condenação gerou protestos mundo afora por não enquadrar os agressores no crime de estupro por “não haver provas de violência ou intimidação”. A defesa usou postagens anteriores da vítima de 18 anos em redes sociais para dizer que “ela já sabia muito bem o que queria e o que estava fazendo”. A carta de que os cinco eram “cidadãos de bem”, “bons filhos” e “trabalhadores” também foi utilizada à exaustão, mesmo que alguns deles já houvessem sido condenados por roubos e dirigir sob influência de álcool.

O cineasta chileno Pablo Larraín (“No”) escolheu essa história para contar na primeira produção de sua produtora, Fábula. “La Jauría”, disponível no Amazon Prime Video, leva a história para o Chile e se preocupa mais em explorar os acontecimentos posteriores ao ocorrido.

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Série chilena "La Jauría", do Amazon Prime Video. Crédito: Amazon Prime/Divulgação

A trama tem início quando Blanca (Antonia Gisen), uma estudante de 18 anos que liderava os protestos contra um professor assediador em uma escola, desaparece. Pouco depois, o vídeo com o estupro coletivo da moça viraliza nas redes.

Forma-se então um grupo de policiais para cuidar do caso: Olivia Fernández (Antonia Zegers), Carla Farías (María Gracia Omegna) e Elisa Murillo (Daniella Vega). À medida que se aprofundam na investigação, descobrem não se tratar de um caso isolado, mas de uma rede de abusadores que cometem crimes como parte de um jogo, o “Jogo do Lobo”.

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Série chilena "La Jauría", do Amazon Prime Video. Crédito: Amazon Prime/Divulgação

“La Jauría” funciona como uma boa trama policial, sempre em movimento e enrolando muito pouco. As descobertas são constantes e a série oferece alguns clímax durante seus oito episódios. Paralelamente à caçada das investigadoras, Celeste (Paula Luchsinger), irmã de Blanca, também promove uma investigação que pode colocar a própria vida em risco.

Há ainda algumas subtramas que vão se alinhando gradualmente. O texto aproveita para explorar algumas peculiaridades do Chile, como os mandos e desmandos de militares que fizeram parte do governo do ditador Augusto Pinochet - famílias tradicionais que mantêm suas influências mesmo 30 anos após o fim da sangrenta ditadura chilena. Isso, obviamente, resulta em corrupção e um incômodo jogo de poderes nas entranhas do país, aspecto abordado apenas superficialmente pela série.

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Série chilena "La Jauría", do Amazon Prime Video. Crédito: Amazon Prime/Divulgação

“La Jauría” é forte e não hesita em tirar o espectador de seu conforto. O texto é preciso em reforçar que o estupro não é uma questão sexual, mas de força, poder, controle e submissão alimentados pelo machismo e pelo patriarcado. A série também acerta ao não estereotipar um ou outro tipo de homem pela violência - ao colocar estupradores jovens, velhos, tímidos, extrovertidos, ricos, pobres, inteligentes ou não, o roteiro deixa claro que a ameaça pode vir de qualquer lugar.

Apesar de toda a força de sua mensagem e de uma qualidade narrativa competente para os arcos dramáticos, “La Jauría” poderia trabalhar melhor outros aspectos. Quando se envereda para o lado da ação policial, as cenas são quase risíveis de tão ruins - fica explícito que os diretores não têm o menor cacoete para filmar o gênero. Uma cena de perseguição no ato final da série é risível de tão ruim. A série pelo menos faz com que o público entenda a capacidade daquelas policiais antes de vê-las em ação, pois suas habilidades nunca são injustificadas.

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Série chilena "La Jauría", do Amazon Prime Video. Crédito: Amazon Prime/Divulgação

Nesse aspecto, ainda, é interessante ver como a série explora Daniela Vega. A atriz transexual, que ficou famosa pelo ótimo “Uma Mulher Fantástica” e até apresentou um prêmio no Oscar, vive uma personagem cis, algo raro. A policial Elisa Murillo é quem ganha mais desenvolvimento na primeira temporada de “La Jauría”, a única com flashbacks para mostrar seu passado e até justificar seu comportamento. Esse desenvolvimento, a princípio, parece deslocado, mas se encaixa quando entendemos aonde o roteiro quer chegar, além de deixar claro que a personagem não é uma mulher trans.

“La Jauría” tem mensagem forte e funciona como série policial apesar de suas falhas. Ao final da temporada, quando percebemos o gancho para mais episódios (a série já está renovada e os episódios sendo filmados), fica a impressão de que tudo o que vimos até ali, um arco completo, pode se perder com uma nova trama, ou seja, todo o discurso pode ganhar ares ainda mais ficcionais e se perder ao sair de um caso que aproxima o espectador da obra e abraçar um aspecto mais fantasioso.

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