Priscila Gama é ativista e empreendedora social. Coordena 12 projetos de ação afirmativa e impacto social, é presidente do Instituto Das Pretas.Org e detentora de um ego leonino

Invisibilidades visíveis

Vão continuar tentando abafar a nossa voz, mas sempre terá um espaço pra exaltarmos a nossa vez

Publicado em 04/11/2019 às 16h38
Atualizado em 30/03/2020 às 14h01
 Budah, nome artístico de Brendha Rangel, é natural de Cariacica . Crédito: Divulgação
Budah, nome artístico de Brendha Rangel, é natural de Cariacica . Crédito: Divulgação

Para começar, negritadamente, vamos citar uma colocação muito conhecida entre nós negros, mas talvez, ignorada por quem não o é: "Coisa de preto sempre teve na moda, mas ser preto NÃO".

Olha, o babado inicial da coluna de hoje é desenhar que ser preto no Brasil é uma construção muito profunda e que eu, Priscila Gama, entendo que vai para além da afrodescendência e se fundamenta na soma de características físicas, na etnicidade identitária individual e também pela leitura social.

E você entende que em um balaio de gato de etnias e relacionamentos inter-raciais, essa construção de educação racial tem que ser feita na base da pedagogia infantil? Enfim, em 2019 tem gente que ainda acredita que "morenos" e "pardos" são definições identitárias de raça... então, teremos muito trabalho ainda pela frente.

O que a gente não pode desconsiderar é que, em 2019 existe um recorte de orgulho identitário negro jamais observado na nossa história e que, indivíduos negros em todas as suas tonalidades e pluralidades de características físicas, se identificam enquanto grupo e coletivizam cada vez mais diálogos de empoderamento sócio-econômico e financeiro. Isso quer dizer que, hoje, negros buscam protagonizar suas narrativas e caminhar juntos pela igualdada e equidade em um mundo que ainda acha que nós não sabemos falar por nós mesmos.

É uma doideira! Porque ao passo de fundamentar o nosso protagonismo, o lugar de fala e as competências sobre as nossas vivências, a gente ainda vive e convive em espaços que pessoas não-negras se veem no direito de assumir esse protagonismo de fala, tirando por exemplo, a oportunidade de que pessoas negras dividam suas dores e não terceirizem os diálogos. É um CAOS!!!

Imagina o absurdo que é você, mulher negra - sentada numa mesa com vários amigos, negros e não-negros - e um deles pergunta algo sobre as dores de ser uma mulher negra. Imediatamente, quem assume a voz e a vez desse diálogo é uma mulher não-negra que não tem nem ideia das dores de ser uma mulher negra, mas que invisibiliza e impossibilita que as mulheres negras sentadas à mesa, falem sobre suas próprias vivências!

Gente, toda vez que eu presencio um negócio desse, eu lembro das minhas leituras sobre o Apocalípse! O problema é que é apocalíptico mesmo. E é apocalíptico para nós há centenas de anos, desde que um grupo de pessoas decidiu que sabia o que era melhor pra humanidade, desenhou um sistema bem maluco de opressão e domínio, subjugou civilizações e grupos étnicos e seguiu dizimando existências através do quê!? DA USURPAÇÃO DO PROTAGONISMO E LUGAR DE FALA SOBRE NOSSAS PRÓPRIAS VIVÊNCIAS.

Ser um não-negro aliado não dá o direito de você falar, por exemplo, por uma mulher negra se a mesma estiver presente, por perto ou puder ser contratada pra ser minimamente uma representatividade assertiva em espaços privilegiados onde a negritude é quase inexistente. PAREM DE FALAR POR NÓS.

E porque eu fiz a citação no começo da coluna de hoje? Pra vc se lembrar que o Kevinho faz mais sucesso que o Nego do Borel. Porque o Kevinho, o Livinho, o JP... são brancos e numa cultura racista, coisa de preto sempre fica melhor em um corpo branco.

Que o Renan da Penha tá preso por incitar alguma coisa que também tocam nas picups dos DJs brancos, mas como o Renan é preto, favelado e mobilizador cultural... é criminoso, o resto é só DJ mesmo...

Que a Budah e Melaninas MC são Rappers incríveis, mas que o RAP fica mais comercial na voz de meninas loiras que ainda tem coragem de usar nossas trancinhas pra se aproximarem no que dá de serem pretas... mas ninguém pergunta pra elas por, exemplo, o que perguntam pra nós: LAVA ISSO AÍ? COMO LAVA? NOSSA, DEVE TER PIOLHO... Mas não, por que numa cabeça branca nunca...

Tô falando isso pra você lembrar que os bailes funks das periferias pretas da cidade são parados, impedidos, criminalizados... mas que na Praia do Canto, eles continuam fluindo tranquilamente. Tô falando pra dizer que grafite pela mão da artista preta premiada é Pixo, mas que no muro do moleque branco é arte.

Que a rainha de bateria preta é vadia, que a loira é socialite (como se a sociedade se resumisse à uma sociedade burguesa, branca e privilegiada que a outra parte, nem sociedade fosse). Inclusive, eu mesma agora quero ser chamada de socilite, uma It Favela, Gurica Maneger of Style, Coach de Afrodeboche.

Enfim, isso tudo só pra anunciar novembro e te preparar para outras tantas e tantas segundas-feiras de exaltação de nossas potências pretas que seguem subvertendo às investidas de nos manter nos guetos.

Nossos corpos enquanto nossos territórios são grandiosos demais pra ficarem encaixados. Nossa negritude plural demais pra ser padronizada. E o racismo não tem nem look pra acompanhar o Baile de Gala do nosso orgulho durante o mês de novembro, imagina nos outros 11 meses!!!

Mas as investidas continuarão por meio de invisibilidades sutis e de racismos invisíveis aos olhos. Vão continuar tentando abafar a nossa voz, mas sempre terá um espaço pra exaltarmos a nossa vez. É um fenômeno da natureza, queridos. Precisamos apenas lidar com isso.

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